As fronteiras entre o popular e o erudito na literatura popular são questionáveis, uma vez que ambos se entrelaçam, num diálogo que se formula através empréstimos, adaptações, re-acomodações, jogos paródicos, etc. Numa rota de mão dupla, tanto autores populares recolhem elementos presentes em obras eruditas, como ocorre inverso. Exemplifica isso o processo de criação de obras por parte de Ariano Suassuna, que é marcado por uma estilização de textos populares e uma combinação destes com obras eruditas, como explica Idelette Muzart Fonseca dos Santos:
A referência à obra popular constitui o cimento do Movimento Armorial e confere-lhe sua peculiaridade na história da cultura brasileira. Orienta a pesquisa e condiciona a criação. Contudo, não poderia ser exclusiva: o Movimento não reúne artistas populares, mas artistas cultos que recorrem à obra popular como a um “material” a ser recriado e transformado segundo modos de expressão e comunicação pertencentes a outras práticas artísticas. Esta dimensão culta e até erudita manifesta-se tanto na reflexão teórica, desenvolvida em paralelo à criação, quanto na multiplicidade das referências culturais. (SANTOS, 2000, p. 98).
Emblemático desse método de criação é a peça O auto da Compadecida, que, como já citado, foi criado a partir de cordéis. Semelhantemente, Mário de Andrade escreveu seu Macunaíma através de uma combinação de várias lendas, superstições, ditos populares, etc. O inverso também se observa através, por exemplo, da constante recorrência dos cordelistas a obras eruditas para reescrevê-las na linguagem popular. Muitas dessas versões, a propósito, são analisadas pela professora e pesquisado Márcia Abreu em seu artigo Então se forma a história bonita: relações entre folhetos de cordel e literatura erudita (2004).
Um olhar mais atendo direcionado à obra de Patativa do Assaré nos faz perceber que ele soube muito bem conciliar essas duas facetas, a popular e a erudita. Pois, para além de seus cordéis e de seus versos matutos, desenvolveu uma lira também considerada erudita. Prova disso é o poema a seguir, intitulado “O peixe”:
Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente
, Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.
*
Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.
*
O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.
*
Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!
(ASSARÉ, 1978).
Como se observa, trata-se do citado poema de um soneto, forma clássica cuja invenção é atribuída ao poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374) e cuja introdução na literatura portuguesa deveu-se a Sá de Miranda (1481-1558). Para além do molde erudito, cultivado em vernáculo por autores de referência, como Camões, Bocage, Antero de Quental, Florbela Espanca e Olavo Bilac, chama a atenção o aspecto lexical: ao contrário da corruptela da língua, Patativa esmera-se por adotar a norma culta da língua. Indo além, traz em seu poema termos incomuns no vocabulário dos sertanejos: cristalino, folgar, porvir, incauto, ladino, etc. Cabe ainda aqui um registro sobre o caráter alegórico da parte inicial do texto, que passa a ser desvelada ao leitor na parte final do poema: tal como o peixe, o eleitor sertanejo costuma ingenuamente se deixar fisgar pelas falsas promessas dos políticos em véspera de eleição.
Fonte de pesquisa: www.uern.br/controledepaginas/profletras-mossoro-dissertacoes-
Sobre o autor
Marcos Lima
Produz e divulga a sabedoria popular do povo alagoano e nordestino.