
À medida que os Ave de Jesus me contavam seus “causos” e cantavam seus benditos, dei-me conta de alguns elementos bastante recorrentes nestas narrativas. Primeiramente, relatar um evento ou defender um preceito moral, entre os Ave de Jesus, vem em geral acompanhado de cuidado estético. Ao lado do esforço caprichoso com o belo, observei que, nos “causos” contados, as entidades divinas têm participação histórica nos eventos locais e, quando os Ave de Jesus contam algum “causo” sobre algum milagre, é bastante recorrente a menção da presença, no local do evento, de um amigo, parente, conhecido ou daquele mesmo que relata o evento. Mais precisamente, chamou-me a atenção o fato de a intervenção divina ou a comunicação da divindade com os fiéis não se fazer unicamente, como em muitos outros relatos de aparições em outras regiões do Brasil, através de uma experiência mística ou espiritual. Ao contrário, as entidades divinas são personagens encarnadas historicamente. Esse outro tipo de “aparição” ou contato com entidades místicas, ou as chamadas visões em Juazeiro do Norte, nos leva a uma visão de mundo particular, onde os sujeitos se entendem a si próprios e a sua história como parte do desenrolar de eventos de uma narrativa verdadeiramente bíblica (Velho 1995).
Há em Juazeiro uma cultura de milagres e aparições onde se destaca a materialidade histórica das entidades e imagens bíblicas (a paixão, a mendicância, etc.), tornando o conceito de “cultura bíblica” fundamental para compreender como as imagens bíblicas e a paisagem geográfica se fundem e se projetam como categorias de construção do real. A “cultura bíblica”, como é definida por Velho (1995), representa um complexo de símbolos e imagens originários da Bíblia, que funcionam como uma referência para o pensamento e a ação. Steil, por sua vez, mostra em seu estudo sobre a romaria ao Santuário de Bom Jesus da Lapa, sertão baiano, como os personagens e a geografia local são identificados com os mitos e a Bíblia; ainda segundo esse autor, através de representações bíblicas, os romeiros estabelecem uma relação entre a experiência presente e o passado dentro do contexto sertanejo (Steil 1996: 17).
Em verdade, muitos estudos tentam mostrar o papel que a evangelização da Igreja do período colonial desempenhou no surgimento e no desenvolvimento de tais formas de crenças, ou seja, na sacralização da geografia e da história locais, através de um processo de identificação entre personagens, lugares históricos e imagens bíblicas. É importante salientar, entretanto, que não se está aqui afirmando a determinação da evangelização sobre a religiosidade popular sertaneja. Sahlins (1999), através do episódio do Capitão Cook, já nos ensinou como a história é estruturada culturalmente.
Portanto, devemos considerar a força estrutural do interno, ou seja, da lógica cultural ou, no dizer da Sahlins (1999; 2004), de uma matriz simbólica, ou do habitus cultural local na constituição do externo (fatores externos ao grupo, como, por exemplo, a expansão do capitalismo, a globalização). De modo que tal forma de evangelização por si só não explica os seus efeitos (a crença de que Padre Cícero é Jesus, de que Juazeiro é Jerusalém, etc.). Snow et al.(1986), para dar conta das relações entre a lógica interna (habitus cultural à maneira de Sahlins) e sua relação com os fatores externos (globalização), entendem esse encontro como um frame alignment (alinhamento de marcos interpretativos) da realidade. No alinhamento dos marcos interpretativos internos e externos podem ocorrer processos de amplificação (frame amplification) de alguns aspectos já presentes no marco interpretativo dos “nativos”. Nesse sentido, poderíamos imaginar que o mesmo processo ocorre entre o habitus cultural dos sertanejos e o da evangelização (globalização do cristianismo / catolicismo), favorecendo elementos, lógicas já latentes que se reforçam no encontro cultural levando à transformação do marco interpretativo anterior, tal qual no modelo de Sahlins (Snow et al. 1986).
Dessa forma, se podemos dizer que os Ave de Jesus herdaram dos portugueses a crença medieval no Quinto Império que seria governado sob o signo do Espírito Santo e da Coroa Portuguesa, não podemos esquecer que, mesmo antes dos portugueses, algumas tribos indígenas “já buscavam pela terra sem mal”, “seguindo o primeiro profeta em terras brasileiras, o karai” (Clastres 1995).
Mas antes de adentrar na questão específica em que neste artigo quero tratar, é importante situar aqueles que servem de base para as minhas referências etnográficas
Por Candice Slater (1986), em sua tese de doutoramento, também observou a referência a testemunhas ocul (…)
Fonte: www.journals.openedition.org/etnografica/