Seguindo exemplo de Mário de Andrade, projetos mapeiam cultura
15/05/2021
Mario de Andrade, escritor e crítico de arte.
Em 1943, Mário de Andrade dava forma final a “O turista aprendiz” (lançado apenas postumamente, em 1976), o relato de viagens por Norte e Nordeste do país iniciadas em 1927. Ali ele lançava seu olhar modernista sobre o Brasil profundo, tornando também mais profundas as bases de seu pensamento sobre a identidade nacional — que inspiraria tropicalistas e experiências como o levantamento “Música do Brasil”, de Hermano Vianna, e os álbuns regionais do selo Discos Marcus Pereira. Agora, o lançamento, nos próximos dias, do segundo volume da caixa “Mestres navegantes”, que registra tradições musicais do Cariri cearense, e os muitos projetos que se desenrolam em diferentes pontos do mapa nacional mostram que, passados 70 anos, o Brasil continua buscando se reconhecer pondo o pé na estrada — seguindo, atualizando ou mesmo contradizendo as pegadas andradianas (lembradas também na Ocupação Mário de Andrade).
Se o espírito de “O turista aprendiz” está presente nesses projetos, o olhar mais atento sobre eles esclarece que algumas voltas já foram dadas nesse parafuso cravado por Andrade na primeira metade do século XX. “Mestres navegantes — Cariri” é exemplo claro disso. Idealizada pelo músico e produtor Betão Aguiar, a pesquisa procura, como no projeto de Andrade, divulgar tradições pouco conhecidas — no caso, reisado, banda-cabaçal, coco, guerreiro, maneiro pau, bacamarte, penitentes, incelenças, repente, embolada, cordel, lapinha e banda de pife — para que elas sejam incorporadas ao pensamento sobre a nação e também à produção contemporânea. Porém, diferentemente do que acontece com o modernista, o novo levantamento dialoga diretamente com as necessidades dos grupos registrados — em ações como a distribuição de 300 CDs para cada mestre participante usar para divulgar a arte de seu grupo.
— Salvaguardar um patrimônio cultural depende muito mais de os próprios mestres e brincantes acharem que o que fazem é bom do que de mim, que registro, ou do público que aprecia. Isso, sim, garante que se continue fazendo — diz Betão. — Por isso a iniciativa de dar suporte para que eles possam se articular nos meios da música, seja com a entrega dos CDs, seja com a visibilidade no meio digital junto a grandes nomes da música brasileira (a partir do dia 15, todo o conteúdo de “Mestres navegantes” estará disponível no Portal Natura Musical, programa que patrocinou o projeto). Quando fui ao Cariri pela primeira vez, em 2007, fui ministrar oficina de produção musical com ferramentas digitais. Levei uma câmera digital pequena, e ali mesmo pude começar a pesquisa com os mestres e a parceria com a meninada de lá.
Como assinala Betão, a tecnologia alterou a natureza do registro, com maior fidelidade e menor interferência:
— Pudemos levar equipamento de ponta para captar todo o material em HD nos terreiros dos mestres, em lugares distantes, com condições precárias, para poder gravar sem interferir na festa. Não queria discos frios, mas o quente deles festejando. Usamos equipamentos portáteis com alcance à distância, conseguimos “atrapalhar” o mínimo possível — conta o produtor. — Foi engraçado ver como as crianças já se adaptaram ao digital, todo mundo tem um celular que faz foto e vídeo. Procuramos estimulá-los a administrar seus próprios sites, muitos jovens acabaram se apropriando mais da história dos seus avós por estarem trazendo aquilo para a linguagem que dominam, o digital.
Izabella Faya, autora do projeto do documentário “Cinco vezes Chico”, sobre as tradições que margeiam o Rio São Francisco aprovado no último edital do Petrobras Cultural, chama a atenção para o mesmo aspecto.
— Retratar o Velho Chico através dos olhares de cinco diretores seria inviável com as antigas câmeras e equipamentos de som e luz.
Num olhar menos afinado com Andrade, Izabella lamenta outro lado da tecnologia:
— Tentei ao máximo inserir tradições que tenham muitas décadas, mas acredito que a chegada da TV e da internet nesses locais tenha mudado muito a visão sobre as crenças e verdades absolutas que deveriam se perpetuar quando as comunidades estavam isoladas. Mas a essência está ali.
Baseado nas pesquisas do etnógrafo alemão Koch-Grünberg (cujo trabalho influenciou “Macunaíma”), na virada do século XIX para o XX, o projeto “A música das cachoeiras” investiga a música da Amazônia Ocidental, sem o desejo de “filtrar” as tradições.
— Percorremos comunidades em busca da música tradicional e popular, sem distinção. Nesse percurso, visualizamos o velho e o novo em simbiose: pajés de penas e jovens punks comemorando o Dia do Índio em Roraima.
Karen Cavalcanti, responsável pelo Natura Musical (que patrocina o “A música das cachoeiras”), vê a importância desses projetos exatamente no encontro antigo-novo:
— É um conceito de raiz-antena. Porque todas as cenas novas que aparecem têm a busca de raiz. Como foi no mangue beat em Pernambuco, agora no Pará e mesmo em alguma medida na Bahia, na relação do axé com o samba de roda.
Conhecer para respeitar
O movimento de se debruçar sobre essas tradições hoje não é, como há um século, exclusivo dos intelectuais das metrópoles ou dos pesquisadores estrangeiros. O projeto “Registrando as marujadas”, aprovado no Petrobras Cultural, foi desenvolvido em Saubara, cidade do interior da Bahia:
— Essa manifestação ficou por muito tempo desativada. Somente em 1978 remanescentes se juntaram e reativaram o grupo. Eles recorreram à memória, mas muito se perdeu. Caso isso aconteça novamente teremos um material (o projeto prevê um documentário, um site e o uso de redes sociais) que poderá ajudar que curiosos a recriem — diz o coordenador Rosildo do Rosário.
Mesmo nas metrópoles, há olhares voltados para camadas mais profundas da História. O projeto “Guia patrimonial da Pequena África” estuda essa região do Rio e a importância de sua influência afro:
— Não ficaremos apenas no samba, na religião — explica o autor Carlos Nobre. — Vamos mostrar que nessa região passaram Lima Barreto, Machado de Assis, Paula Brito, André Rebouças, Chiquinha Gonzaga.
O programa Rumos, cuja nova edição está prevista para ser lançada em agosto, há mais de dez anos faz um mapeamento da produção nacional com artistas de diferentes estados.
— Estamos conversando para entender qual é o papel de um projeto de mapeamento hoje. Certas coisas que fazíamos no começo perderam o sentido, como as caravanas de debate (para cobrir a falta de informação em certas regiões do Brasil) — acredita Edson Natale, coordenador do programa, que tem boa parte do conteúdo disponível no canal do Itaú Cultural no YouTube.
Há outros bancos de dados, como a Encontroteca (em desenvolvimento, com patrocínio da Oi), uma biblioteca virtual de textos, imagens e registros em áudio de manifestações tradicionais. E há iniciativas do poder público que seguem o fortalecimento do conceito de patrimônio imaterial. É o caso do Mapa de Cultura do estado do Rio (mapadecultura.rj.gov. br).
— O mapa tem uma visão plural, que compreende desde o parque ecológico até a quituteira, além de manifestações como o Boi Pintadinho de Miracema, um grupo de produção muito original e consistente — defende Adriana Rattes, secretária estadual de Cultura.
Produtora do projeto “Histórias da tradição” (sobre mitologias indígenas), Angela Pappiani recorre aos nativos:
— Como diz um velho sábio xavante: “Ninguém respeita aquilo que não conhece”.