Como Juazeiro do Norte se tornou a terra da Mãe de Deus: penitência, ethos de misericórdia e identidade do lugar

Romaria de Nossa Senhora das Dores

Este artigo discute o processo de enraizamento da tradição religiosa da penitência no Juazeiro do Norte, Ceará – um dos maiores centros de peregrinação do Brasil. A penitência foi trazida para o Juazeiro pelos primeiros missionários, tendo sido parte da visão de mundo de muitos dos líderes religiosos que viveram e andaram pelo sertão (por exemplo: Padre Ibiapina, Antonio Conselheiro, Padre Cícero, Beato Zé Lourenço e outros). O que interessa aqui discutir é como, em Juazeiro, uma prática trazida por missionários católicos – e o ethos a ela relacionado (piedade e misericórdia) – se enraíza, tornando-se ela mesma identidade do lugar. Paralelamente a esse processo simbólico e cultural, muitos peregrinos/romeiros que para lá se deslocam, passam a morar, viver e morrer na cidade de Juazeiro do Norte e, assim, também se enraízam lá. Nesse sentido, os romeiros que para Juazeiro se movem, bem como os penitentes que passam a lá residir, performam uma busca de sentido e verdade que é centrípeta (Segato 1999a), para o interior dela (Juazeiro) mesma, posto que ela é a Terra que o Eterno prometeu, onde a nação começou e onde tudo se consumará.

“Deslocamento” é aqui usado no sentido ambíguo a fim de preservar as diferentes dimensões da realidade social que o termo pretende representar. Tal conceito em sua acepção mais comum se refere ao fenômeno empírico do deslocamento de pessoas e tradições culturais através de espaços. Deslocamentos de sentidos, subjetivos, identitários e espaciais são temas da sociologia e da antropologia contemporâneas. Autores como Bauman (1996) e Clifford (1997) elegem peregrinação como a metáfora para os tempos contemporâneos. Simon Coleman e John Eade (2004) ampliam o sentido do termo, descentrando a análise da peregrinação ao santuário e desvinculam a relação supostamente necessária entre deslocamento e espaço. Preservam, todavia, a idéia de movimento, passando a incluir ao lado do espacial, outras formas de deslocamentos – corporificados (embodied), imaginados e metafóricos.

A simples definição de deslocamento/peregrinação traz consigo todo um debate da teoria sócio-antropológica contemporânea. Autores se dividem entre diferentes interpretações do fenômeno de identidades emergentes surgidas através de processos macro sociais tais como pós-colonialismo, globalização e migração. Muitos enfatizam os aspectos da desterritorialização, fluidez e hibridização, favorecendo uma agenda liberal (Appadurai 1998; Bhabha 1998). Outros autores chamam a atenção para fenômenos que envolvem processos contrários aos anteriores, como fixação e territorialização produzidos e mediados por sistemas de reciprocidade enraizados localmente (Sahlins 1997). Numa outra linha interpretativa, alguns enfatizam a dimensão do enraizamento da tradição no/ao lugar e são mais reticentes à idéia de tradição separada de espaço, fazendo uma crítica contundente à noção genealógica de tradição (herança/conhecimento cognitivo e simbólico). Ingold e Kurttila (2000) expressam bem esta crítica:

Argumentar, entretanto, que o conhecimento tradicional é completamente recebido na sua forma completa e acabada de antecedentes genealógicos, como um legado do passado, é tautológico da admissão que a experiência cotidiana de habitar a terra não toma qualquer lugar no processo da constituição desta. Uma vez que o acervo da tradição pode ser passado, como um bastão de revezamento, de geração a geração, não há diferença, em princípio, onde as pessoas estão, com quem vivem, ou que fazem para sobreviver.
(…)
Os princípios do modelo genealógico, construídos como a definição formal do status do ser indígena, tiveram na sua aplicação conseqüências fatais para as populações assim designadas. Os administradores públicos frequentemente recorrem a tais princípios para justificar políticas de remoção de populações indígenas de suas terras. Argumentam que para assegurar a continuidade do saber tradicional nada mais é necessário do que adequados mecanismos institucionais de armazenamento em acervos e replicação. Dessa forma, recursos para a preservação das culturas indígenas são alocados em museus, em cursos das línguas nativas e artesanato (handicraft), pesquisa sobre folclore e outros. Contrastando com essa perspectiva, as populações locais entendem que o conhecimento tradicional é inseparável de suas práticas atuais de habitar a terra. Pela razão de que é através dos relacionamentos estabelecidos com a terra, com os animais e com a vida vegetal, que o conhecimento é gerado. Portanto quando os fazendeiros Sami, estudados por Bjerkli, dizem que sua tradição é como eles fazem aqui (Bjerkli 1996:9), eles estão se referindo ao conhecimento fundado em atividades de um certo modo de vida em comum (livehood) que fazem da terra, para eles, um lugar. (Ingold & Kurttila 2000:186). (minha tradução e grifo meu).

Pessoalmente, tomo um caminho interpretativo intermediário, próximo aos desenvolvimentos de S. Coleman e J. Eade (2004), P. Basu (2004) e Mitchell (2001). Coleman e Eade (2004), em Reframing Pilgrimage, cultures in motion, comentam que se é possível falar em processos disjuntivos também devemos observar que em muitos fenômenos de peregrinação há referências afetivas e simbólicas relativas ao lar/casa, raízes culturais e ancestrais, etc. A etnografia de Paul Basu (2004) sobre turistas americanos na Escócia, ilustra tipicamente o argumento de Coleman e Eade (2004), uma vez que entre esses peregrinos há a presença marcante de metáforas de fixação, lar, ancestralidade cultural e genealógica. Defendo, portanto, que os processos envolvidos no deslocamento podem ser sempre estudados em sua dupla dimensão, ou seja, incorporando mais que excluindo suas oposições (localismo e deslocamento, junção e disjunção, territorialização e desterritorialização), como André Droogers (2008) já salienta em seu artigo nesta presente edição de Religião e Sociedade.

A partir da etnografia sobre os Ave de Jesus – um grupo de penitentes em Juazeiro do Norte, Ceará – pretendo explorar como o deslocamento (peregrinação) se combina com a fixação (territorialização de uma tradição religiosa através de um processo simbólico de sacralização do espaço na cidade do Juazeiro do Norte), em ambos os aspectos espacial e simbólico (o processo de sacralização do espaço e peregrinos/romeiros que se tornam moradores locais). A proposta interpretativa deste artigo está, portanto, em analisar como um sistema de práticas religiosas trazidas pelos primeiros missionários se transforma na identidade do lugar em Juazeiro do Norte. Por outro lado, interessa ainda analisar a peregrinação menos como discurso e representação, e mais como algo que é vivido e experimentado, e, sobretudo, expresso material e afetivamente (embodied na paisagem e no corpo) (Coleman 2002; Coleman & Eade 2004; Mitchell 2001). Entendo ainda que ao largo do processo de territorialização, podem ocorrer efeitos de deslocamentos de sentido e significação (junção e disjunção) de acordo como o acervo simbólico religioso da penitência é acionado pelos diversos grupos dentro e fora do contexto de Juazeiro do Norte.

Artigo de Roberta Bivar Carneiro Campos

Fonte: www.scielo.br

 

 

 

 

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