O sucesso dos almanaques inspirou a edição de outras publicações do gênero por pequenas tipografias e editores independentes. Conhecidos como folhinhas de inverno, almanaques de feira ou almanaques sertanejos, tais livros começaram a ser editados no final do século XIX e ainda nos dias atuais são comercializados nas feiras livres e nos mercados populares. Embora as ciências sociais tenham dedicado poucos esforços na investigação sobre essas publicações, os almanaques de cordel constituem importante material de ordem intelectual editado por agricultores, poetas de cordel e profetas. Esses livros ocupam, portanto, um papel singular na divulgação de práticas culturais, cosmologias e na sistematização de saberes tradicionais que há séculos circulam no país.
Os almanaques de cordel destinam-se aos sujeitos que vivem na zona rural e nas pequenas cidades do interior; sua utilidade enquanto oráculo agrícola é orientar os agricultores a respeito das épocas propícias ao plantio e à colheita, como também sobre ocorrências de secas e inundações. Trazem informações sobre plantas medicinais e seus efeitos terapêuticos; apresentam indicações de chás, banhos e outras recomendações para o combate a doenças. Também são indispensáveis: o calendário anual, as datas comemorativas, as fases da lua, os eclipses, os santos de cada dia, as orações e anedotas, bem como propagandas de remédios, talismãs, anéis e toda sorte de amuletos. Em geral, são lançados no mês de setembro, quando há uma acirrada disputa entre os astrólogos para garantir o privilégio de lançar as profecias para o próximo ano “em primeira mão”.
Do ponto de vista editorial, os almanaques guardam muitas semelhanças com a literatura de cordel: muitos são escritos por poetas de cordel, compartilham dos mesmos processos de editoração, circulam nos mesmos locais (mercados populares, feiras) e almejam o mesmo leitor. A antropóloga Ruth Almeida, em pesquisa que inaugurou, em 1981, os estudos sobre o tema no Brasil, afirma que “os almanaques são considerados como parte da literatura de cordel”. Em 1999, o jornalista Roberto Benjamin utilizou a expressão almanaques de cordel15, conceito que traduz de modo bastante apropriado as proximidades entre essas duas modalidades de livro. Assim como a literatura de cordel, os almanaques são impressos no formato de oito, dezesseis ou trinta e duas páginas, em papel jornal, no tamanho de 11×13 cm, com ilustrações na primeira capa (algumas em xilogravura).
O espaço da quarta-capa é reservado para a publicidade, como anúncios de amuletos e a relação de revendedoras onde os livros podem ser adquiridos. É interessante observar que a maioria dos produtos e serviços anunciados é confeccionada pelos próprios editores/autores: a comercialização dos horóscopos personalizados, talismãs e anéis, compõem outra expressiva fonte de renda associada aos almanaques.
Na edição de 1970 do Juízo do ano, Manoel Caboclo apresenta os efeitos nocivos do hábito de fumar e aproveita para fazer propaganda de seus serviços como astrólogo: O fumo por si só contém nicotina, fufurol, colidrina, ácido prússico, monóxido de carbono, amoníaco, alcatrão; estes venenos ALMEIDA, Ruth Trindade de. Almanaques populares do nordeste. 1981. 225 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Cultural). Universidade Federal de Pernambuco, Recife. p. 18. 15 BENJAMIN, Roberto. Almanaques de cordel: informação e educação do povo. Comunicação apresentada no Colóquio Les Almanachs Populaires em Europe dans les Amériques (XVIIè XIXè siècles). Universitè de Versailles-Saint-Quentin-emYvelines, 1999. RIEB52.indb 115 05/04/2011 14:50:14 116 revista ieb n52 2011 set./mar. p. 107-122 reunidos, algumas gotas bastam para matar um cão.
O vício de fumar destrói a saúde, tira o apetite, produz a insônia, transtornos nas vias respiratórias, causa impotência sexual, faz sofrer de arteriosclerose, ser ainda candidato a sofrer do câncer. Prejudica a saúde e a bolsa do fumante. Se deseja abandonar este vício, escreva mandando Cr$ 10,00 (dez cruzeiros novos) e receberá a consulta que lhe permitirá abandonar o hábito de fumar com muita brevidade. Basta mandar as datas de nascimento e o dinheiro para Manoel Caboclo e Silva – Rua Todos os Santos – Juazeiro do Norte, Ceará. As aproximações entre os almanaques e a literatura de cordel podem ser percebidas por meio da leitura do almanaque Juízo do ano, editado pelo poeta de cordel Manoel Caboclo e Silva durante o período de 1960 a 1996, na Tipografia Casa dos Horóscopos, em Juazeiro do Norte. Manoel Caboclo conciliou durante toda a vida a escritura poética e informativa, produzindo em sua casa editorial cordéis e almanaques, vendendo talismãs e horóscopos individuais por meio de correspondências trocadas com os consulentes.
Autor de dezenas de folhetos de cordel, João Ferreira de Lima foi durante décadas editor do Almanaque de Pernambuco, cuja primeira edição data de 1936 e tem se mantido em circulação até 2011 pela família do poeta. Por sua vez, desde 1950 até a atualidade José Costa Leite escreve folhetos de cordel, almanaques e desenha xilogravuras. No seu Calendário nordestino é possível ver como o almanaque reúne a poesia de cordel, a narrativa informativa e a arte da xilogravura. Os maiores atrativos dos almanaques de cordel são os prognósticos (previsões gerais para o ano) e o horóscopo (previsões para cada signo do zodíaco).
O horóscopo introduz os leitores no universo secreto e hermético das ciências ocultas: astrologia, numerologia, quiromancia, alquimia, além das profecias, magias e adivinhações, saberes que transitam nas fronteiras entre o campo religioso, a relação dos homens com a natureza e o mundo do sobrenatural. Os horóscopos são elaborados pelos próprios editores/autores, que se orgulham em exibir na capas os títulos de “astrólogo”, “amador de ciências ocultas”, “amador de astrologia e experiências populares”. A partir das posições ocupadas pelo sol, pela lua e pelos planetas do sistema solar em relação à terra são elaboradas as previsões para o ano em curso, assim como as indicações para cada signo do zodíaco. 16 SILVA, Manoel Caboclo. Juízo do ano para 1970.
Juazeiro do Norte: Casa dos Horóscopos, 1969. p. 4. RIEB52.indb 116 05/04/2011 14:50:14 117 revista ieb n52 2011 set./mar. p. 107-122 As capas trazem um texto em versos, apresentando as virtudes do almanaque em forma de acróstico, além de conselhos gerais. Na edição de 2009 de O Nordeste brasileiro, o editor Manoel Luiz dos Santos apresenta o seguinte acróstico: Bom inverno não é em todo canto Reze muito voltado para Deus, Animado lá nos trabalhos seus, Sob a luz do Divino Espírito Santo, Inda que por aí não chova tanto, Levante cedo que a riqueza vem, Esperando por Deus e mais ninguém, Isto é nosso pão de cada dia, Recurso que dá com alegria O sustento pra gente viver bem.17 Na página seguinte, os almanaques apresentam o “Juízo do ano”. Esse texto pode ser considerado uma espécie de editorial, em que o editor anuncia, a partir de uma complexa combinação de cálculos matemáticos – número áureo, epacta, letra dominical, regente, ciclo solar e dominante – as características do ano e as previsões meteorológicas.
Os almanaques de cordel trazem também enunciados de caráter moral que reforçam as diferenças entre homens e mulheres. No Almanaque do Nordeste, por exemplo, o astrólogo Vicente Vitorino apresenta conselhos para mulheres nascidas sob o signo de gêmeos: As mulheres deste signo em 1990 devem fugir do jogo, política e fofoca das vizinhas, porque traz prejuízo, perturbações e desarmonias no lar, cuidar bem dos filhos e zelar pelo esposo, tentar o comércio e o criatório de aves, que será bem sucedida, confiar em Deus e em você mesma. A iniciação no hermético universo das ciências ocultas, que permitiu a muitos agricultores largarem o cabo da enxada para dedicarem-se ao estudo de complexos mapas astrológicos e à elaboração de consultas particulares, é obtida por meio da leitura de livros que se tornaram imprescindíveis para a construção destes saberes tradicionais.
Todos os autores de almanaque fazem questão de declarar que apóiam seus ensinamentos na leitura 17 SANTOS, Manoel Luiz dos. Calendário brasileiro. São José do Egito, PE, 2009. 18 MELO, Vicente Vitorino de. Almanaque do Nordeste. Caruaru, PE, 1990. p. 23. RIEB52.indb 117 05/04/2011 14:50:14 118 revista ieb n52 2011 set./mar. p. 107-122 de livros fundamentais: Lunário perpétuo19, Missão abreviada20, Tarô advinhatório e Experiências astrológicas. Contudo, o Lunário perpétuo tem sido a referência mais importante na formação destes “amadores de astrologia” e, segundo Ruth Almeida, o “esteio fundamental de todos aqueles que fazem almanaques populares”21.
Fazendo um cotejamento do juízo do ano elaborado por José da Costa Leite é possível perceber uma clara influência do Lunário perpétuo nos prognósticos para 2008: A história dos almanaques vem de muito longe. Digamos, já há mais de 500 anos. Na minha mocidade, conheci vários tipos deles, Almanaque CORTEZ, Jerônimo. Lunário perpétuo: prognóstico geral e particular para todos os reinos e províncias. Tradução: Antônio da Silva Brito. Lisboa: Livraria Editora, 1955. 20 COUTO, Manoel Gonçalves. Missão abreviada. 6. ed. Porto: Tipografia de Sebastião José Pereira, 1868. 21 ALMEIDA, Ruth Trindade de. op. cit., p. 21. RIEB52.indb 118 05/04/2011 14:50:14 119 revista ieb n52 2011 set./mar. p. 107-122 do Capivarol, Biotônico Fontoura, A Saúde da Mulher, A Cabeça de Leão e o Almanaque Sadol que até agora recente circulava.
Conheci e revendi o Almanaque do Nordeste, de Vicente Vitorino. O Nordeste Brasileiro de Manoel Luiz dos Santos, que além de meu almanaque e o de Vicente Vitorino, eu o revendia também. O Juízo do Ano, de Manoel Caboclo e Silva. O Almanaque de Pernambuco de João Ferreira de Lima. Houve um outro Almanaque de Pernambuco muito antes de João Ferreira de Lima. Existiu também o Almanaque do Recife, que eu possuo um exemplar.
Manoel Luiz dos Santos começou a escrever em 1948 e já vai com 59 anos de publicação. Vicente Vitorino começou a escrever almanaque em 1952 e publicou até 2006, pois deixou por motivos de doença 54 números. Eu escrevi dois anos seguidos um pequeno almanaque versado entre 1950 e 1953. Em 1959 resolvi a escrever e publicar o Calendário Nordestino, que graças a Deus vem se mantendo em pé até o dia de hoje, servindo ao homem do campo, aprovando em 80 por cento todo ano, graças a Deus. Manoel José dos Santos também escrevia um almanaque versado, isto antes de 1945. Meus amigos: para se fazer em almanaque é preciso além de ter o dom, a prática e os livros: Lunário Perpétuo, Tarô Advinhatório, Astrologia Prática e as Plantas Curam. Então, o meu almanaque, o de Vicente Vitorino, o de João Ferreira de Lima, o de Manoel Luiz dos Santos e o de Manoel Caboclo, nenhum é melhor nem pior do que o outro: são todos iguais. Todo ele tem o seu valor. Como cachaça, toda ela é feita de cana de açúcar.
Calendário Nordestino hoje em dia é considerado (O Campeão do Nordeste). Almanaque para ser bom, tem que ser Calendário Nordestino. Alguns dos almanaques citados por José Costa Leite tiveram vida longa e chegaram até nós. Na atualidade é possível encontrar nas feiras e nos mercados públicos O Nordeste brasileiro – editado por Manoel Luiz dos Santos desde 1949, em São José do Egito, Pernambuco – o almanaque mais antigo em circulação. Semanalmente José Costa Leite refaz o mesmo percurso e segue da cidade de Condado, Pernambuco, onde reside, para as feiras de Goiana, Timbaúba e Itabaiana, para encontrar-se com feirantes e agricultores ansiosos pelas previsões do Calendário nordestino.
Também é possível encontrar o Almanaque da Paraíba, editado no Sítio Riacho Fundo, na cidade de Tavares, Paraíba, desde 1955. Atualmente, na cidade do Crato, sul do Ceará, o profeta, astrólogo e agricultor Francisco Augusto da Silva publica, desde 1967, o Almanack do ano. LEITE, José Costa. Calendário nordestino. Condado, PE. 2007.
As capas trazem um texto em versos, apresentando as virtudes do almanaque em forma de acróstico, além de conselhos gerais. Na edição de 2009 de O Nordeste brasileiro, o editor Manoel Luiz dos Santos apresenta o seguinte acróstico:
Bom inverno não é em todo canto
Reze muito voltado para Deus,
Animado lá nos trabalhos seus,
Sob a luz do Divino Espírito Santo,
Inda que por aí não chova tanto,
Levante cedo que a riqueza vem,
Esperando por Deus e mais ninguém,
Isto é nosso pão de cada dia,
Recurso que dá com alegria
O sustento pra gente viver bem.
Fonte: www.revistas.usp.br
Sobre o autor
Marcos Lima
Produz e divulga a sabedoria popular do povo alagoano e nordestino.