Dona Virgínia de Moraes, das Alagoas (como se diz por lá), foi mestra de Reisado, que é também a Folia de Reis, o Auto dos Congos, o Congado, o Boi-Bumbá, o Bumba-meu-boi, o Guerreiro – no entanto, sob cada um destes nomes se escondem características muito particulares, uma multitude de variações espalhadas por todo o território nacional, daquele que foi pela maior parte da nossa história o principal festejo do Brasil: a comemoração do ciclo natalino, culminando no dia 6 de janeiro, da chegada dos Reis Magos, amalgamada com o motor subjacente da vida de um país que foi agrário pela maior parte de sua existência: o boi. O auto da morte e ressurreição do boi constitui-se a parte central do Reisado, mas este é um espetáculo muito maior, que envolve música, dança, teatro, circo, artes plásticas, e tudo em interação direta com o público, na praça ou entrando-lhe casa adentro.
Uma obra de arte total, em proporções que Richard Wagner não chegou a sonhar. Dito assim, parece absurdo que as duas singelas peças gravadas por Mônica, cada uma delas com oito versos, possa ter, ou apenas refletir, o grau de complexidade, seja do grande Auto do Reisado (que dura horas e é apresentado ao longo de dias), seja das composições de Guinga ou Edu Lobo. Senão, vejamos:
Ô minha gente / Eu vi a nuvem girando / Eu vi o vento ventando / Eu vi a terra girar Meu figurá / A Mestra Virgínia é peia / Quem anda na terra alheia / Pisa no chão devagar eDeterminei subir no vento / Eu fui o país da lua / Arrecebi uma friagem tua / Eu vi a terra diferente Mas o corisco ía passando de repente / Com o corisco eu me abracei / Voltei pra terra, eu aplantei / Aplantei pra nascer semente
Comparando-se a letra e as melodias destas duas pequenas cantigas que narram ambas uma espécie de viagem sideral de sonho, nota-se uma outra coisa em comum. Nas duas, o movimento geral realizado pela letra ao longo das duas estrofes é repetido pela melodia, só que a cada estrofe, e duas vezes ao todo. Em Ô minha gente, a melodia abre em movimento ascendente, enquanto a letra narra a visão da viagem, e termina de volta à nota fundamental, base da escala, juntamente com as palavras terra, na primeira parte, e chão, na segunda.
Em Determinei, a melodia já se inicia no agudo e vai novamente baixando aos poucos, enquanto a letra igualmente faz o movimento do céu para a terra, e novamente a fundamental (o chão da melodia) corresponde ao pouso (e neste caso mais ainda, ao aprofundar-se na terra). Mas não é só. Estas duas melodias são construídas sobre o modo mixolídio, em que o sétimo grau da escala, abaixado em meio tom, quebra com a percepção de encerramento vinda da afirmação da tonalidade, comum à maior parte da música a que estamos acostumados.
Nas duas, a melodia se inicia apoiada justamente neste sétimo grau, que se torna assim a nota mais distante do chão, afastada propositalmente da nota de repouso, o que dá a sensação de instabilidade, de suspensão no ar – em conformidade absoluta com a descrição de quem sobe no vento e vê a nuvem girando. Mônica Salmaso, ao gravar estas duas músicas e as outras de origem folclórica neste álbum deu a elas o mesmíssimo tratamento instrumental dispensados às composições com autoria definida.
Não foram usadas como vinhetas entre as faixas, e sim como os cantos elaborados que são. Mestra Virgínia (como Clementina de Jesus, que recolheu outra cantiga gravada neste álbum, Bate canela) aparece como representante, depositária e construtura de um saber que mal tem como ser medido, criado no correr de tempos e tempos e que dá à música feita no Brasil a profundidade inclusive para se misturar com outras sem perder o senso próprio. Uma arte que para ser ouvida e entendida é preciso ver a terra diferente, através do tempo, ver a terra girar, e ter a paciência de entender o processo que faz nascer uma música que, como árvore, vai tão alto porque tem raízes fundas, porque alguém antes soube aplantar para nascer semente
Fonte: www.tuliovillaca.wordpress.com