A atividade da lida com carro de boi sempre foi regulada por um tempo cíclico formado por vários outros tempos cíclico: o tempo da criação, treinamento e utilização da parelha (pareia) de bois, o tempo de viagem necessário para que a carga fosse entregue, o tempo da vida útil do carro de boi, o estar em casa junto à família e o estar fora de casa, trabalhando com seus animais. As atividades relacionadas ao carro de boi entraram em declínio devido às alterações nas relações de produção para as quais a temporalidade do carro de boi tornou-o anacrônico. Contudo, concomitante a este processo, estas mesmas relações de produção permitem a ressignificação do carro de boi e do carreiro e os inserem no sertão contemporâneo segundos novos critérios. A partir desta ressignificação, um novo tempo cíclico começou a regular as atividades do carreiro o tempo das festas e cerimônias. Estas tornaram-se elementos de suma importância, dando novas referências, criando novas narrativas, estabelecendo novos padrões de comportamento e relacionamento para construtores e condutores de carros de boi.
32Diante dos depoimentos dos carreiros condutores percebe-se um certo desencanto com o futuro de sua profissão, mas pode-se, também, vislumbrar o germe que indica uma possível mudança que já aconteceu com o uso dos cavalos e dos jegues pelo sertanejo. Ambos estão rapidamente deixando de ser utilizados na lida diária seja nas atividades atreladas ao manejo do gado, seja naquelas ligadas ao transporte de passageiros ou de carga. O transporte de passageiros e de pequenas cargas e a lida com a boiada hoje são, basicamente, realizados por motocicletas, mais rápidas e de manutenção mais barata. Os jegues são abandonados a sua própria sorte e muitos são atropelados à beira das estradas. Outros são levados para abatedouros e têm sua carne exportada para a China. Quanto aos cavalos são utilizados nas atividades de lazer como pegas de boi, vaquejadas e cavalgadas. Estas duas últimas atividades movimentam mercados de milhões de reais e utilizam cavalos de raça que só aqueles que são abastados conseguem adquirir e mantê-los saudáveis.
Como mostraram Mendes Junior (2017) e Simonard, Vital Brazil e Araújo (2017) o sertão continua contemporâneo, mas de uma contemporaneidade diferente daquela de algumas décadas atrás. Nele coisas surgem, se transmutam, desaparecem. O sertanejo agora usa celular, dirige uma motocicleta, tem tevê a cabo em sua casa, acessa à internet. Se os carros de boi vão sumindo da lida diária do sertanejo, ainda podem ser encontrados em grandes quantidades em desfiles e festas quando os carreiros se encontram para confraternizar, contar causos e lembrar dos tempos passados. As festas, nesta conjuntura de perda de importância do trabalho de carreiro, ganham importância devido
ao seu poder de mobilizar ou forçar as identidades a nível sócio-geográfico, já que seu significado profundo, suas manifestações, a liturgia do seu desenvolvimento, os discursos e os mitos a mantêm trabalhando de perto ou de longe a unidade e a identidade social (Bezerra, 2007, p. 72).
Sendo assim, a festa permite àqueles desalentados com o futuro de sua profissão afirmarem sua identidade bem como a importância de suas atividades – o fabrico e/ou a condução de carros de bois – em vias de desaparecer, em suma afirmarem a importância social de suas profissões e, por que não, suas próprias importâncias sociais como aqueles que ao longo de muitos anos foram responsáveis pela geração de riqueza no sertão. As festas, que contam com o apoio das elites políticas locais e da Igreja Católica (é notável a ausência das diversas denominações evangélicas neste espaço) e este apoio afirma o reconhecimento dos “poderosos” aos carreiros, mesmo que seja só durante os curtos períodos de realização das festas.
Contudo, veem-se poucos jovens nestas confraternizações o que mostra que os mesmos não se interessam nem pela profissão de fabricante de carros de boi nem pela de condutor dos mesmos. Sem jovens, sem transmissão da tradição e do conhecimento popular, não há referência cultural nem conhecimento que consiga transmitir-se e perpetuar-se.
Fonte: www.journals.openedition.org