Quase 250 anos após o seu nascimento, em 12 de outubro de 1810, na Vila Imperial de Papary, na então Capitania do Rio Grande, a educadora, escritora e feminista Nísia Floresta Brasileira Augusta continua sendo, sob o majestoso pseudônimo que a tornou conhecida, uma das personagens mais emblemáticas da galeria dos grandes vultos nacionais, embora, para a maioria dos brasileiros, ela ainda seja uma mera desconhecida. O fato é que, apesar do ostracismo, Nísia Floresta destacou-se por sua singularidade em pensar e abraçar publicamente ideias inovadoras para a época em que viveu – contou a seu favor o liberalismo republicano do pai, escultor e advogado português radicado no Brasil, e o status socioeconômico da mãe e do marido, que a deixou viúva muito cedo e com dois filhos. Plural, publicou livros e artigos sobre temas variados, defendendo causas: denunciou o drama do índio brasileiro, subjugado pelo colonialismo estrangeiro; defendeu a abolição do sistema escravocrata e a instauração do regime republicano no Brasil; pregou a liberdade de cultos religiosos; lutou pela educação da mulher e por sua emancipação… Em sua obra, registro de um período histórico de transformações políticas e de uma biografia intelectual e irrequieta, geograficamente falando, percebe-se que as bandeiras que desfraldou, incluindo a de ser mãe, permearam a sua existência, no Brasil e na Europa, onde ela morou durante vinte e sete anos, falecendo aos 74 anos de idade, em 24 de abril de 1885, em Bonsecours, na França.
Não é de se estranhar, portanto, que por sua liberdade de pensamento e ideias arrojadas, bem como por adotar métodos de ensino não convencionais – daí polêmicos –, principalmente no badalado colégio para meninas que manteve no Rio de Janeiro, Nísia tenha sido vítima de calúnias e difamações ao longo da sua vida, bem como postumamente. Um episódio, contudo, somado aos cortes que sofreu o longo poema A Lágrima de um Caeté (1849), de sua autoria, censurado pelo governo imperial por denunciar a degradação do índio brasileiro espoliado pelo branco colonizador e homenagear o advogado Nunes Machado (1809 – 1849), líder da Revolução Praieira (1848 – 1849), além de outros constrangimentos públicos, foi determinante para que Nísia decidisse passar uma temporada na França, ou seja: após um grave acidente, a saúde da sua primogênita debilitou-se e, acatando um aconselhamento médico, ela resolveu “mudar de ares” com os filhos, privando-se, com pesar, do convívio com a família que tanto prezava, os amigos mais próximos e um Rio de Janeiro culturalmente em efervescência, ao mesmo tempo deixando para trás os desafetos. Porém, não bastando ser caluniada, difamada e censurada na Corte, eis que, a partir da segunda metade do século XIX, Nísia tornou-se alvo de comentários nada edificantes por parte da também educadora e escritora Isabel Gondim (1839 – 1933), sua conterrânea, que, gratuitamente, passou a especular sobre a sua vida, divulgando boatos – crassa contradição para uma pesquisadora da sua estirpe, pontual no registro de fatos históricos.
Infelizmente, austera e puritana, Gondim era o oposto de Nísia, mulher “atrevida”, desafiando o establishment; o tempo e outras más línguas, por sua vez, encarregando-se de difundir os boatos alardeados por Gondim e criando, ainda, novos disse me disse, sobretudo após o traslado dos restos mortais de Nísia da França para o Brasil, em 1954, e do seu depósito num mausoléu construído para tal fim na sua cidade natal, que, aliás, já havia mudado de nome em sua homenagem (decreto-lei de 23 de dezembro de 1948), passando a chamar-se Nísia Floresta – à ocasião, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) lançou um selo, em edição comemorativa, com um retrato de Nísia, desenhado com bico de pena, e um texto escrito pelo folclorista norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), enaltecendo a homenageada. Enquanto isso, com os despojos da “filha pródiga” de volta ao lar, mas para a imponente tumba, onde estão até hoje, as “maldições” associadas ao seu nome ganharam novas feições: para a maioria da população local e arredores, Nísia não passava de um espectro a vagar pelas ruas do lugar; um vulto, arrastando correntes ou coisa parecida, a se lamentar, seduzindo homens casados ou assustando solitários noctívagos em noites de lua cheia. Ou seja, um mito, uma personagem lendária, desafiando o tempo e o espaço no imaginário popular, até que, em 1985, um século depois de Gondim ter publicamente questionado a idoneidade da brasileira augusta, outra conterrânea, a jornalista e escritora Socorro Trindad, saiu em sua defesa.
Para Trindad, “Nísia Floresta tornou-se mito por ser maldita”, já que, entre outros rótulos, ganhou fama de “puta erudita”, embora um mito possa ser desvendado, mas, para isso, é necessário desvendar a sua “maldição” – estigmas são difíceis de erradicar. No caso de Nísia, isso ainda é possível, apesar de, durante muito tempo, quando tiveram a oportunidade de fazê-lo, não foram poucos os que apenas reforçaram falsas crendices relacionadas ao seu nome. Exemplo disso foi a declaração do publicitário, poeta, ator, ensaísta, tradutor e professor brasileiro Décio Pignatari (1927 – 2012) ao jornal Folha de S.Paulo, em 1986, “afirmando” que o positivismo chegou ao Brasil “pela cama de Nísia Floresta”, assim insinuando que ela havia sido amante do filósofo francês Auguste Comte (1798 – 1857), com quem, na Europa, manteve convívio social e correspondência, mas que cujo teor, pelo visto, o autor da crítica ignorava, além de ainda ser ignorada por muita gente a verdadeira razão da primeira viagem de Nísia à Europa, em 1849. Em artigo publicado n’O Diário do Povo, em 1991, a então coordenadora do SOS – Ação Mulher de Campinas, Maria José Tarube, “atestou” que Nísia teria sido “expulsa” do Brasil por praticar o “lesbianismo” com as alunas do seu colégio… Curiosidades à parte sobre a vida sexual da educadora, a sua trajetória sempre foi marcada por conflitos, dramas e desafios vários, sempre superados pela lucidez que lhe era peculiar, à revelia de todo um preconceito arraigado e dos inúmeros adjetivos, pejorativos ou não, à ela atribuídos.
“Leviana, mestiça e adúltera”; “indecorosa”; “mulher extraordinária, notável”; “monstro sagrado”; “adorável mito”… O fato é que, por sua ousadia intelectual, Nísia Floresta, brasileira de solo e augusta nos princípios, foi um atrevimento que desafiou os costumes da sua época – como diria hoje, ela fez a diferença. Daí ter sido por muitos respeitada; por outros relegada as brasas de um purgatório que até hoje queimam e teimam em mantê-la às margens dos tradicionais livros de história, limitando o acesso ao conhecimento da sua biografia a um círculo seleto de pesquisadores e curiosos – mesmo assim, muitas vezes “por alto” –, embora os seus livros já tenham sido reeditados, inclusive os escritos em francês e italiano, que, traduzidos para o português, podem ser encontrados em algumas livrarias, mas, por algum motivo, sem visibilidade em suas estantes, bem como sem o merecido destaque na mídia. De qualquer forma, uma coisa é incontestável: não se pode falar de feminismo e de educação no Brasil sem falar de Nísia, para quem a educação seria o mais importante e eficaz instrumento de conscientização da mulher do seu papel na sociedade – condição sine qua non para a conquista da sua emancipação, liberdade e cidadania, sendo a educação da mulher “o barômetro que indica os progressos de toda e qualquer civilização”, mas que somente um trabalho em conjunto, envolvendo mulheres e homens, é capaz de “desarraigar herdados preconceitos”, operando uma real metamorfose, que, aliás, diga-se de passagem, ninguém sabe quando ocorrerá.
Nathalie Bernardo da Câmara traduziu Fragments d’un ouvrage inédit – Notes biographiques, de Nísia Floresta Brasileira Augusta, A. Chérie Éditeur, 111 pages. Paris, 1878; a tradução, Fragmentos de uma obra inédita – Notas biográficas, publicada pela Editora da Universidade de Brasília (UnB), 151 páginas. Brasília-DF, 2001.
O presente artigo, revisado e atualizado pela autora, originalmente publicado no extinto jornal O Galo. Ano XIV, n° 7, Fundação José Augusto, Departamento Estadual de Imprensa do Rio Grande do Norte, Natal-RN, julho 2002, e, posteriormente, transcrito para o blog A Bagagem do navegante, em 12/10/2013.
Em tempo: No dia 7 de junho comemora-se a liberdade de imprensa no Brasil – no mundo, a data é comemorada no dia 3 de maio, conforme deliberou a Declaração de Windhoek em 1991, na Namíbia, durante evento promovido pela UNESCO, e constituiu-se num apelo à mobilização do planeta para proteger os princípios fundamentais da liberdade de expressão, tal como consagrados no Artigo 19.º da Declaração Universal do Direitos Humanos, que afirma: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão…”.