Sumário da variação sofrida pelo processo eleitoral, na história do Brasil independente
14/11/2020
A Constituição de 1824, como sabido, determinou que as eleições de deputados e senadores, para a composição da Assembléia Geral, se fizessem por sufrágio indireto e censitário (arts. 90 e ss.).
Em 1842, diante do escândalo geral provocado pelo ambiente de violência em que se desenrolara o último pleito, conhecido em nossa história política como “as eleições do cacete”, o Governo decidiu baixar um decreto regulador do processo eleitoral, o de nº 157, de 4 de maio. Em que pese às boas intenções governamentais, o Decreto era evidentemente inconstitucional, e a oposição não deixou de denunciar o fato. O art. 97 da Carta estatuia que “uma Lei regulamentar marcará o modo prático das Eleições, e o número dos Deputados relativamente à população do Império”. Um decreto governamental não podia, a todas as luzes, ser aceito como o equivalente de uma lei.
A regulação legal exigida pela Constituição acabou sendo votada em 19 de agosto de 1846, sem que, no entanto, a sua constitucionalidade estivesse isenta de impugnações. O diploma legal mandava computar em prata o censo eleitoral que a Carta havia estabelecido em moeda nacional. Além disso, a nova lei excluiu o direito de voto dos magistrados e altos funcionários. Tais disposições, como foi oportunamente assinalado, dificilmente poderiam ser entendidas como a regulação do “modo prático das eleições”.
Em 1855, outro Decreto governamental, o de nº 842, cuja inconstitucionalidade era ainda mais pronunciada, instituiu entre nós a eleição por distritos, então chamados círculos, como em Portugal. O mais curioso é que essa eleição distrital majoritária, geralmente considerada pelos especialistas de hoje como uma brutalidade contra a minoria, foi defendida ardorosamente pelo seu idealizador – Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês de Paraná – como o modo mais eficaz de se evitarem as chamadas “câmaras unânimes”. Escusa lembrar que o apregoado remédio não curou a moléstia, que continuou a grassar durante todo o Império e a 1ª República.
inco anos depois, o Decreto nº 1.082 alargou a representação dos círculos para três deputados, votando o eleitor em chapas fechadas de três candidatos. Mas enquanto pelo sistema de 1855 exigia-se para a eleição a maioria absoluta dos votos, instituindo-se para tanto dois turnos de votação, em 1860 o novo regulamento eleitoral contentou-se com a maioria relativa.
Como ainda persistisse a ocorrência das câmaras unânimes, o Governo resolveu baixar o Decreto nº 2.675, de 20 de outubro de 1875, com o propósito de forçar a representação da minoria. Doravante o voto seria dado em apenas dois candidatos, embora continuassem os distritos a ser representados por três deputados. Era a lei do terço.
Não obstante essa contínua alteração das regras eleitorais, a minoria timbrava em não aparecer no Parlamento. Era geral o sentimento de que se haviam esgotado todas as possibilidades oferecidas pelo sistema representativo estatuído pela Carta Constitucional. Em discurso proferido na Câmara por ocasião das discussões da lei do terço, José de Alencar vocalizou de certa forma a opinião dominante, ao concluir: “Temos experimentado os círculos, os triângulos, diversas formas de manipulação, falta a eleição direta. É o travesseiro para o enfermo que não tem repouso” .
A oferta desse travesseiro repousante enfrentava, porém, um grave obstáculo constitucional: a necessidade de se reformar a Carta era, agora, inafastável e insofismável. Ora, a reforma constitucional fazia-se, então, por um processo sem dúvida mais democrático do que o que passou a vigorar com a república, mas, por isso mesmo, muito demorado. Inicialmente, deliberava-se sobre proposta, cuja iniciativa pertencia a pelo menos um terço dos deputados, da necessidade de se emendar tal e qual artigo da Constituição. Vencida a necessidade da reforma, expedia-se uma lei, pela qual determinava-se aos eleitores dos deputados à seguinte legislatura, “que nas procurações lhes confiram especial faculdade para a pretendida alteração, ou reforma”, a qual seria, só então, proposta, discutida e votada (arts. 175 e ss.).
O governo imperial tinha, porém, pressa em introduzir a eleição direta e o Imperador receio de que uma discussão de mudança constitucional degenerasse em desordem política. Deliberou-se, então, reformar a Carta mediante lei ordinária, sem maiores exigências. Era uma indisfarçável violência, que os legisladores faziam à Constituição. A Câmara dos Deputados transformava-se dessa forma, como bem qualificou José Bonifácio, o Moço, em uma “constituinte constituída”. Infelizmente, como se sabe, não foi este o único caso em que se praticou semelhante abuso em nossa agitada história constitucional.
O Gabinete Sinimbú, que apresentara a proposta por meio de seus correligionários políticos, não logrou contudo vê-la aprovada. Foi preciso aguardar a constituição do Gabinete Saraiva e a promulgação da lei de 1881, para que tivéssemos, enfim, um sistema de eleições diretas, voltando-se, para esse efeito, à organização do eleitorado em círculos, agora chamados definitivamente distritos, de um só deputado.
Proclamada a República, a nova Constituição, ecoando a velha queixa contra as “câmaras unânimes” do Império, determinou que na Câmara dos Deputados se garantisse “a representação da minoria” (art. 28, in fine). Para obedecer ao preceito, a primeira lei eleitoral republicana, a de nº 35, de 26 de janeiro de 1892, à míngua de idéias novas, voltou à fórmula dos círculos de três deputados, votando o eleitor em apenas dois.
Enquanto isso, cada estado federado organizava autonomamente o seu direito eleitoral. O Rio Grande do Sul, sob a liderança de Júlio de Castilhos, adotou desde logo os preceitos do positivismo puro e duro, impondo em sua lei de 1897 o voto a descoberto. A Exposição de Motivos justificou a medida, afirmando que era preciso “viver às claras”, e que o voto secreto constituia um dos mais poderosos estímulos à corrupção eleitoral. O legislador federal acabou cedendo à influência dessas idéias. A Lei Rosa e Silva, de 1904, deu ao eleitor a faculdade de votar a descoberto.
Este é mais um episódio que ilustra a nossa propensão a adotar, em matéria eleitoral, com a mais firme convicção, remédios absolutamente contraditórios para os mesmos males. A Lei de 1855, como forma de proteção à minoria, introduziu a eleição distrital majoritária, que sempre foi tida como o modo mais drástico de se esmagarem os minoritários. Meio século depois, com o fito de lutar contra a corrupção do voto, a lei eleitoral gaúcha de 1897 e a Lei Rosa e Silva procuraram impedir o voto secreto, que viria a ser, como todos sabem, o cavalo de batalha dos revolucionários de 1930 contra as práticas eleitorais da República Velha.
A nossa primeira Constituição republicana inaugurou, ademais, o sistema de correções quantitativas à representação popular, determinando que o número de deputados federais não seria nunca inferior a quatro por estado.
Foi só depois da Revolução de 30, com o Código Eleitoral de 1932 e a Constituição de 1934, que introduzimos o sistema da representação proporcional, preconizado por José de Alencar em livro escrito em 1866 e publicado em 1868 (5). A fórmula idealizada por Assis Brasil – listas partidárias abertas e voto nominal (6) – viria a ser o principal fator de enfraquecimento dos partidos políticos. O objetivo visado pelo idealizador do sistema, aliás, não era outro: Assis Brasil não fez mistérios quanto ao seu propósito de acabar com a prática do partido único, existente na República Velha.
Importante criação do Código de 1932 foi, sem dúvida, a Justiça Eleitoral. Tanto mais que, na reforma da Constituição, votada em 1926, incluira-se um dispositivo de claro sabor autocrático: “Nenhum recurso judiciário é permitido, para a justiça federal ou local, contra … a verificação dos poderes, o reconhecimento, a posse, a legitimidade e a perda de mandato dos membros do Poder Legislativo ou Executivo, federal ou estadual”.
Após o interregno do Estado Novo getulista, a Constituição de 1946 voltou ao sistema do Código Eleitoral de 1932, sem a representação classista introduzida pela Constitição de 1934. Registre-se, no entanto, que em 7 de janeiro de 1946, antes portanto de promulgada a nova Constituição, o Decreto nº 8.566 determinou que a votação para a Câmara dos Deputados se fizesse pelo sistema de listas partidárias fechadas. Mas a fórmula, que corresponde à única representação proporcional legítima, contrariava o tradicional personalismo de nossos políticos. O Decreto entrou em vigor, mas não foi aplicado.
No tocante à composição das Câmara de Deputados, a Constituição (art. 58) suprimiu o número mínimo de representantes por estado, mantendo apenas um redutor no número de deputados a partir de determinado nível populacional, sistema esse que já existia desde a Constituição de 1891.
Sobre o triste período do regime militar, nada há a dizer, pois as eleições, quando as havia, não passavam de mera encenação para o público exterior. É curioso, porém, que na fase da abertura lenta, gradual e segura, uma mal denominada emenda constitucional, de nº 22, promulgada em 5 de julho de 1982, determinou, para gáudio de certos cientistas políticos, que “na forma que a lei estabelecer, os deputados federais e estaduais serão eleitos pelo sistema distrital misto, majoritário e proporcional”. A lei, bem entendido, não estabeleceu coisa alguma. Tivemos mais uma reforma eleitoral no papel.
E com isto chegamos ao regime pós-militar, para o qual Afonso Arinos de Mello Franco cunhou a denominação otimista “República Nova”. A novidade, como todos sabem, ficou só na alcunha.
Quase um século após a proclamação da República, a emenda constitucional nº 25, de 15 de maio de 1985, reatribuiu aos analfabetos a capacidade política, que a Constituição de 1891, reafirmando a Lei Saraiva, lhes havia retirado. Doravante, os que não chegaram a adquirir as primeiras letras, pelo descaso dos Poderes Públicos, já não seriam penalizados por uma deficiência da qual não podiam, honestamente, ser responsabilizados (7).
A mesma emenda nº 25 fixou em 8 e 60 o número mínimo e máximo, respectivamente, de deputados federais por estado.
A Constituição de 1988, praticamente, nada inovou em matéria eleitoral, salvo no que diz respeito ao número máximo de deputados federais por Estado. Em rídicula concessão à magnitude do maior eleitorado estadual, fixou o teto de repreesentantes em 70 em cada circunscrição (art. 45, § 1º), quando o mínimo justo seria de pelo menos 120.
A grande inovação viria com a emenda constitucional nº 16, de 4 de junho de 1997, a qual, contra toda a tradição, a prudência e o bom-senso, introduziu a possibilidade de reeleição dos chefes de Poder Executivo. É uma iniciativa temerária, que virá certamente reforçar ainda mais o poder irresponsável de nossos governantes, sobretudo depois que a interpretação espúria, vingou sustentada pelo Planalto, de que os candidatos à reeleição não precisam se desincompatibilizar.
No plano da legislação eleitoral, o espírito pouco democrático do regime pós-militar também se fez sentir. A partir de 1985, tivemos quase que uma lei especial para cada eleição. Os políticos da maioria dominante procuravam adaptar a legislação às suas conveniências pessoais, praticando aquele abuso de poder que Rousseau considerava o mais corruptor de todos: a manipulação legislativa. A recente Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, parece ter posto fim a essa sucessão de leis eleitorais de encomenda. Ela se ressente, porém, a meu juízo, de um grave defeito de origem: regulando matéria fixada na própria Constituição, e que diz respeito a um dos mais importantes atributos da cidadania, ela deveria ter sido votada como lei complementar, e não como lei ordinária.
Por Fábio Konder Comparato
Fonte: www.scielo.br
Sobre o autor
Marcos Lima
Produz e divulga a sabedoria popular do povo alagoano e nordestino.