A Cultura é vida

Frei Francisco Van der Poel

Sou um franciscano holandês e morei no Vale do Jequitinhonha(MG) entre 1968-1978. Ainda passo por lá anualmente, para não acabar falando do passado. As pesquisas realizadas no nordeste mineiro desde 1971 deram um total de 250 fitas k7 que foram anotadas em 15.000 folhas. Até o ano 2000 morei na Colônia de Santa Isabel(Betim.MG) onde, durante 16 anos, fui o regente do coral dos hansenianos. Hoje estou em Ribeirão das Neves(MG), onde termino um dicionário da Religiosidade Popular Brasileira. Sou membro da Comissão Mineira do Folclore, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Ordem dos Músicos.

Aprendi que a cultura é vida.  Em termos de cultura popular ou folclore, eu diria: o povo guarda as coisas(suas cantigas, seus remédios, as técnicas de trabalho, seus provérbios, suas devoções), enquanto tiverem algum sentido na vida dele.

 Diz um batuque:

A água do coco é doce,

 ela é boa de beber,

quem bebe a água do coco,

 morrendo torna viver.

 (Araçuaí – MG.1975)

Uns versos de um beira-mar(cantiga de trabalho dos canoeiros):

Rio abaixo, rio acima,

numa canoa furada

Arriscando a minha vida,

pruma coisinha de nada.

Todo homem, quando embarca

, deve rezar uma vez,

Quando vai à guerra duas,

e quando se casa três.

Sem a menor dúvida, a cultura popular do Jequitinhonha é o rico patrimônio dos pobres. Ao estudá-lo, buscamos o significado das coisas na vida do pobre, o pesquisador não sendo pobre. Ora, isso torna o trabalho extremamente difícil e delicado. Quanto mais estudamos, tanto mais percebemos que da vida e da cultura popular não sabemos quase nada. Mas vamos à medicina popular.

FATO VERÍDICO

Em 1981, estive no hospital com câncer no intestino e peritonite. Fui três vezes operado. Fiquei por dois períodos no CTI e meu estado esteve desesperador. O médico mandou avisar meus pais para vir da Holanda para assistir o meu enterro. Perderam a viagem porque não morri. Foi bom! Eu mesmo, participando intensamente de tudo isso, tive a nítida impressão que, para o médico, eu era um corpo doente. Recebia soro, havia o controle do coração, mangueiras aqui acolá. Não sentia que tratavam de uma pessoa doente. E é esta a grande diferença do tratamento dado pela benzedeira que trata o doente com remédios, simpatias e rezas. Ela transmite uma grande paz e peleja com a pessoa. Conto esse causo pelo seguinte: Diante do tratamento dado pela rezadeira, é fácil enxergar que ela representa valores. Mas é impossível para nós imitar suas rezas, simpatias e mesmo seus remédios. Tudo isso está perfeitamente adaptado à vida da rezadeira e à dos seus doentes, mas muito diferente da nossa vida. A imitação nos levaria a uma espécie de esquizofrenia. Não se pode num momento acreditar em mau olhado, espinhela caída e encosto, e num outro momento, acompanhar a medicina moderna. O que havemos de fazer? – Pois bem, esse é um dos nossos problemas, hoje.

Nos últimos dez anos tenho me dedicado à produção de um Dicionário da religiosidade popular: vida e religião dos pobres. Resolvi escrever um dicionário e não um manual da religiosidade popular, uma vez que é quase impossível chegar a uma síntese sobre o assunto. Já foram feitas muitas pesquisas e vários estudiosos publicaram suas reflexões. Tudo isso já pode ser organizado num dicionário, mesmo quando há contradições e amadorismo entre os pesquisadores: historiadores, antropólogos, folcloristas, teólogos, pedagogos, médicos. O dicionário já está com 7300 verbetes e 3515 notas de roda-pé. Para preparar a presente palestra, separei todos os verbetes que dizem respeito à saúde/doença do povo e à medicina popular. Deu 108 páginas. O que seriam suficiente para escrever um livro. Mesmo assim, também no resumo apresentado aqui o problema continua o mesmo: Como chegar a uma síntese, uma coisa coerente?

Só de doenças que há no meio dos pobres encontrei 158. Estão incluídos a AIDS, a leishmaniose, a hanseníase, amarelão, mas também o quebranto, o vento virado, a carne quebrado, o peito arrotado. Achei diversos tipos de curadores. Os mais variados tratamentos e remédios. Percebemos também o difícil acesso dos doentes pobres à organização oficial da saúde. A prática da medicina popular não pode ser isolada da realidade social e da história do povo portador da cultura popular.

É grande a diferença entre o oficial e o popular, desde o lugar do tratamento, os nomes dados aos membros do corpo até à própria interpretação da doença e, consequentemente, à prática dos curadores.

Na cultura popular, corpo e espírito não se separam em nenhum momento. Tampouco desliga-se o homem do cosmos, nem a vida da religião.

Diferente também é o modo de racionalizar e falar. Enquanto nós usamos as palavras “analisar, estudar, explorar”, o povo diz: “pus aquilo no sentido”, “morei no assunto” e “fui pelejando”. No nosso mundo racional, somos muito lógicos e formamos especialistas que fazem as várias ciências se contradizerem: o padre cuida de uma parte, o médico de outra e o psicólogo de outra. O astrônomo, o jurista, e o técnico eletrônico já não tem nada a ver com a cura de doenças. A cultura popular é mais intuitiva e trata as doenças com remédios, rezas e simpatias que não se contradizem em nenhum momento.

Vamos então, abrir os olhos e, a partir da realidade dos pobres, tentar conhecer a maneira de trabalhar dos curadores populares.

Por frei Francisco van der Poel OFM

 

 

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