Esta é uma estória contada pela minha mãe nas longas noites de inverno, no borralho ao calor da fogueira. Os arranjos são meus, a panorâmica é a minha terra. Ela contava mais ou menos assim:
Era uma vez… Um senhor chamado Joaquim, que era um homem muito religioso.
Ele e sua família iam à missa todos os dias, faziam jejum, abstinência, pagavam o dízimo religiosamente e liam a Bíblia com fé e fervor.
Conheciam a Bíblia em seus mínimos detalhes e era nela que buscavam a luz para iluminar seus caminho. E seguiam com devoção todos os atos recomendados pela igreja.
Joaquim possuía uma área de terra mais alta na frente, aonde construiu uma boa casa. A parte de trás era de terra mais baixa, onde fez uma valeta em toda a extensão da divisa para escoamento das águas e para enxugar o terreno. Ao fundo do quintal tinha um valado de árvores nativas que faziam um verdadeiro tapume de ambos os lados. Servia, também, para quebrar a força do vento e impedir a entrada de animais.
O senhor Joaquim plantou muitas árvores frutíferas e cultivava uma horta. Era de lá que tirava o sustento da família e pagava suas obrigações. Ali era um paraíso para os passarinhos que cantavam alegremente nas árvores e depois iam matar a fome comendo lagartas, minhocas, pulgões e folhas de algumas plantas, principalmente aquelas recém – nascidas nos canteiros. E isso incomodava muito o senhor Joaquim.
Como bom cristão, ele colocou lá um espantalho para espantar os pássaros. Mas estes também se acostumaram ao espantalho e até pousavam em cima dele.
Então pôs um cata-vento barulhento, que a princípio parecia ter resolvido o problema, mas dias depois incomodava mais o senhor Joaquim do que os passarinhos.
Em volta do valado, eles faziam seus ninhos, cantavam seus hinos e criavam seus filhotes.
Senhor Joaquim rezava, pedia a Jesus Cristo que o ajudasse nessa tarefa difícil de conviver com os passarinhos.
Um melro*, que tinha feito seu ninho bem escondidinho no meio do valado, enquanto sua fêmea chocava os ovos, cantava alegremente em cima do espantalho. Aquele era o seu lugar favorito.
Joaquim, o bom cristão que conhecia a Bíblia desde o gênese ao apocalipse, que conhecia todos os mandamentos da lei de Deus, reclamava:
– Estás a cantar é! Estás a cantar justamente em cima do meu espantalho? Ficas aí a estragar os meus canteiros, a comer minhas verduras e ainda estás a fazer pouco caso de mim? Mas quem paga o dízimo sou eu. O dia que eu te agarrar, tu vais cantar, mas é dentro de uma gaiola.
O homem só prestava atenção no melro macho, mesmo porque, a fêmea é mais discreta, não canta e não é tão vistosa. E agora ela ainda está ocupada na choca dos ovos, sendo que só saia do ninho para se alimentar.
E o senhor Joaquim fazia as mais estranhas armadilhas: arapucas, laços e redes. Muitas aves ele pegou e a todas ele soltou. Era apenas uma que o desafiava, era apenas essa que ele queria.
Os filhotinhos nasceram. E o melro pai logo de manhãzinha já tinha cavoucado com o bico os canteiros novos em busca de larvas, insetos e minhocas.
E o senhor Joaquim pensava:
– Até quando meu Deus? Até quando vou ter que aturar esse melro.
E o melro carregava o dia todo, pois tinha uma família para sustentar. Seus filhotes cresciam e o melro cantava feliz.
Joaquim começou a prestar atenção e viu que o pássaro levava comida no bico sempre para o mesmo lugar no valado. E para lá se dirigiu. O que encontrou foi o que esperava. Um ninho com três filhotinhos já começando a empenar. E pensou:
– Está na Bíblia: “Se os pais não pagarem, que paguem os filhos pelos pais, isso é justo”.
Pegou uma grande gaiola, colocou lá dentro as avezinhas e foi embora com elas.
Quando o melro chegou e viu o ninho vazio, ficou desesperado. Começou a procurar seus filhinhos por toda parte e foi encontrá-los dentro de uma gaiola, pendurada no espantalho. Foi lá onde o senhor Joaquim os deixou para que fossem tratados pelo pai.
O melro atirou-se contra a gaiola heroicamente, debateu-se, mas não conseguiu libertar seus filhotes. Viu que era inútil sua luta, mas não permitiria que seus filhotes sofressem. Saiu dali e foi em busca da liberdade.
Pouco depois ele voltava com algumas sementinhas no bico e colocou-as nos biquinhos de seus filhotes. E assim eles comeram a última refeição que seu pai lhes dava. Logo depois, estavam todos mortos dentro de uma gaiola e o pai jazia no chão.
Quando senhor Joaquim chegou ao quintal e deparou-se com aquela cena, pegou a avezinha na mão, levantou os braços para o céu e gritavou:
– Óh Bíblia! O que sabes tu da vida? A Bíblia és tu… Ó Natureza.
Moral: “A Bíblia és tu… Ó Natureza”.
Fonte: www.ramirodsalvador.blogspot.com