A cultura popular é a digital de um povo

Boi Bumbá, uma brincadeira tradicional

 Uma vez perguntei ao estudioso Luis da Câmara Cascudo o que é cultura popular – verbete que não consta de seu famoso Dicionário do Folclore Brasileiro – e ele me respondeu dizendo que “é a que vivemos, a tradicional e milenar que aprendemos na convivência doméstica”; e que a outra, a erudita, “é a que estudamos nas escolas, na universidade e nas culturas convencionais pragmáticas da vida” (confira em http:// migre.me/c9ce6). Ele disse também que cultura popular “é aquela que até certo ponto nós nascemos sabendo”. No universo da cultura popular – o berço da alma do povo – estão as brincadeiras infantis, os folguedos natalinos, joaninos e carnavalescos, as rezas e os ditos, os contos, as lorotas e adivinhações, os mitos e lendas; os seres encantados, as rendeiras, os artesãos, os poetas de bancada, que são aqueles que publicam versos em folhetos, revividos hoje nas livrarias, nas ruas e escolas de quase todo o País.

 Os cantadores violeiros também se acham nesse universo, rico e belo. Os repentistas, como também nós chamamos os cantadores, são os poetas que improvisam versos em ritmos e gêneros diversos ao som de violas, contando histórias a partir de motes que lhes dão espontaneamente.

Numa ocasião, em plena função, o Cego Aderaldo respondeu a uma provocação de seu parceiro Rogaciano Leite em sextilha, que é a modalidade mais comum no dito Reino da Cantoria:

Andei procurando um besta

Um besta que fosse capaz

De tanto procurar um besta

Eu achei esse rapaz

Que nem pra besta serve

Porque é besta demais!

E o que dizer de tiradas como esta, de Romano do Teixeira?

Eu já suspendi um raio

 E fiz o vento parar

 Já fiz estrela correr

 Já fiz o sol quente esfriar

Já segurei uma onça

Para um moleque mamar

Eu cresci escutando, abestalhado,

 as contendas intermináveis desses artistas.

 Muitos deles, embora já desaparecidos, continuam vivos na minha memória. Dimas Batista, por exemplo, que conheci numa cantoria no centenário Teatro Santa Rosa, na capital paraibana, não dá para esquecer. Ele pertencia a uma linhagem de gênios da qual faziam parte Pinto do Monteiro, Diniz Vitorino, José Alves da Cruz, Manuel Xudu, Fabião das Queimadas, Cego Aderaldo, Louro do Pajeú e Otacílio Batista, os dois últimos, seus irmãos.

Louro e Otacílio eram como sereias: encantavam a todos, ao cantar na toada de suas violas. Os três chegaram a ser enaltecidos por Manuel Bandeira num festival de violeiros no Rio de Janeiro, em 1959. A homenagem em versos de Bandeira foi originalmente publicada no Jornal do Brasil, onde ele tinha coluna, sob o título de Violeiros do Nordeste. O poema está no livro Estrela da vida inteira (Poesias Reunidas; Livraria José Olympio Editora).

 Em 1992, o cantor alagoano Djavan musicou os dez primeiros versos de Violeiros do Nordeste, omitiu o nome do autor e cortou o título pela metade. A música pode ser ouvida no LP Coisa de Acender (Sony Music Entertainment).

Os versos de Bandeira são estes:

1- Anteontem, minha gente,

Fui juiz numa função

 De violeiros do Nordeste

Cantando em competição,

Vi cantar Dimas Batista

E Otacílio, seu irmão.

*

 2-Ouvi um tal de Ferreira,

 Ouvi um tal de João.

Um, a quem faltava um braço,

 Tocava cuma só mão;

Mas como ele mesmo disse,

 Cantando com perfeição,

*

3- Para cantar afinado,

 Para cantar com paixão,

 A força não está no braço:

Ela está no coração

 Ou puxando uma sextilha,

Ou uma oitava em quadrão,

*

 4-Quer a rima fosse em inha

Quer a rima fosse em ão,

 Caíam rimas do céu,

 Saltavam rimas do chão!

Tudo muito bem medido

 No galope do sertão.

*

5-A Eneida estava boba,

 O Cavalcanti bobão,

O Lúcio, o Renato Almeida;

Enfim, toda a Comissão.

 Saí dali convencido

Que não sou poeta não;

*

6-Que poeta é quem inventa

Em boa improvisação,

 Como faz Dimas Batista

E Otacílio, seu irmão;

Como faz qualquer violeiro,

 Bom cantador do sertão,

A todos os quais, humilde, Mando a minha saudação.

 Zé Limeira (supostamente) Assis, com matéria que integra o acervo do Instituto Memória Brasil, sobre Zé Limeira e cultura popular, publicada no extinto suplemento dominical Folhetim, da Folha de S.Paulo, em 2/7/1978 – Foto Darlan Ferreira

Por Assis Ânegelo

http://www.jornalistasecia.com.br/edicoes/culturapopular08.pdf

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