Vamos discutir um pouco o olhar folclorista sobre a dança do Quilombo.
O Quilombo e suas raízes
Há uma polêmica comum entre os estudiosos, sejam eles folcloristas, literatos, musicólogos ou cientistas sociais, sobre a possível historicidade da dança. O questionamento dessa historicidade deriva basicamente da abordagem folclórica à qual a dança é submetida. Tentarei apresentar, em ordem cronológica, os autores e os argumentos que eles utilizam em suas definições do Quilombo, de modo a mostrar as divergências e os consensosno aspecto da historicidade da dança. De acordo com Alfredo Brandáo – o primeiro folclorista a nos fornecer, em 1914, uma descrição da dança em Viçosa de Alagoas – “o auto popular dos quilombos é uma festa puramente alagoana que relembra um dos factos mais importantes da nossa história – a guerra dos Palmares …”. O fato de dança do Quilombo ser original de Alagoas, somado ao fato de ter sido em Alagoas o quilombo dos Palmares, e o enredo do auto contar a história de um mocambo de negros que é destruído por índios, são os elementos que convencem Alfredo Brandáo de que o auto pelo menos “relembra” a guerra dos Palmares. Portanto, de acordo com ele, o auto do Quilombo possui uma historicidade que, de alguma forma, o liga ao fato histórico da Guerra dos Palmares.
Arthur Ramos, por sua vez, concordando com Alfredo Brandão em relação a historicidade do Quilombo, considera o auto uma “sobrevivência histórica dos negros no Brasil, que “relembra” o acontecimento de Palmares. Ramos, já influenciado pela psicanálise, localiza a historicidade do auto do quilombo no “inconsciente coletivo” dos negros de Alagoas. O autor vai além de Alfredo Brandáo, pois efetivamente sugere uma continuidade na memória das populações que habitam as imediações da serra da Barriga e dos vales do Parahyba e Mundaú, que se expressaria nos autos folclóricos. Arthur Ramos chega mesmo a dizer: “No auto, poderemos até certo ponto recompor a vida dos negros confederados no quilombo célebre, cuja história não foi sufficientemente escripta.” Apesar de afirmar que o auto do Quilombo é uma sobrevivência histórica da guerra dos Palmares que nos permite, até certo ponto, recompor avida dos negros palmarinos, Ramos situa essa ‘lembrança” no inconsciente folclórico, pois nenhum dos negros a quem ouviu “tinha a menor noção das lutas históricas dos Palmares. Elles ignoravam por completo a significação do auto dos quilombos. Ou procuravam uma explicação qualquer, mas sem a menor ligação com a epopéia palmarina”.
Portanto, segundo Ramos, a memória do acontecimento histórico de Palmares está presente no auto dos quilombos, mas não na memória consciente das populações do interior de Alagoas. Renato Almeida, outro comentador da dança dos quilombos, aceita a idéia de que ela é uma sobrevivência inconsciente, mas acredita que seja insuficiente o argumento que Ramos usa para explicar a rivalidade entre negros e índios. Segundo Ramos, esta animosidade provém da expediçãoorganizada pelo governador da capitania d. Pedro de Almeida, e da qual faziam parte soldados, índios, pardos da Ordenança e pretos do capitão Henrique Dias. Almeida não considera esse fato relevante, e sugere a possibilidade de imaginação popular aumentar as proporções dos fatos secundários, dando-lhes importância essencial. Em seguida Almeida lança a hipótese de que o folguedo teria sido criado por senhores de engenho para servir de advertência aos escravos. Daí a substituição do inimigo tradicional dos negros – entenda-se os brancos – pelos índios.
O autor admite, no entanto, a falta de base histórica para confirmar a hipótese. Para Mário de Andrade, a dança do Quilombo não representa uma inspiração direta do caso histórico de Palmares. Ele vê no rapto e na reconquista da mulher branca a repetição de um “motivo temático” que faz parte de outras danças tradicionais: “É o rapto e a reconquista da princezinha cristã, muito frequente na parte dramatizada das Cavalhadas. E o rapto e a reconquista da Salôia que ocorre em algumas Cheganças. Já o argumento de lutarem entre si negros e índios no Quilombo parece indicar o caso histórico de Palmares. Mas também eu creio se tratar de um motivo temático, pois de índios e de negros em combate, existem outras danças dramáticas no centro do país […I. Tudo isto não impede, está claro, que a dança do Quilombo tenha o seu fundamento histórico, a única das nossas danças dramáticas que se inspira num Gto da história brasileira.”‘ Mário de Andrade usa o princípio da luta entre o Bem e o Mal para explicar a luta entre índios e negros, enquanto o rapto e resgate da mulher branca se ligam ao “motivo temático” presente nas cavalhadas e nas cheganças. Assim, sua interpretação vai no sentido dos princípios gerais que se repetem aqui e acolá.
Para Oneyda Alvarenga, a dança do Quilombo se inspira incontestavelmente no fato histórico dos quilombos, mas defende que não há elemento capaz de sustentar que o auto celebre, particilarmente, o quilombo dos Palmares. Alvarenga descarta o argumento geográfico sustentado por Alfredo Brandão e Arthur Ramos, que se baseiam na coincidência de auto tematizar o Quilombo e ao mesmo tempo se originar em Alagoas, onde existiu Palmares. Oneyda parece aceitar a idéia, lançada por Renato Almeida, de que o auto seria uma manipulação dos senhores com o objetivo de conter as fugas e o aquilombamento dos negros e desviar seu ódio para os índios, já que viam na dança uma celebração da derrota dos negros e a afirmação de uma animosidade entre índios e negros. Em relação ao segundo aspecto da dança, Alvarenga aponta para um possível paralelismo, presente na poesia popular, onde o preconceito de cor antinegro sustenta que índios e caboclos são superiores aos negros. Assim, a agressão mútua entre índios e negros é confirmada num outro âmbito cultural, o do racismo.
Alceu Maynard Araújo ainda trabalha com a idéia de que o auto do Quilombo “relembra as lutas e os anseios de liberdade dos negros escravos que um dia se refugiaram nas florestas de Palmares.” E continua: “Duzentos e tantos anos depois, os ‘caboclos’ , os ‘pretos’, os ‘catirina’ ladrões, os ‘pais-de-mato’, no seu bailado que se apresenta na ribalta da praça pública, mostram-nos que os entremezes desta dança dramática de hoje são fragmentos do episódio histórico da ‘Troia Negra’, farrapos da Ilíada alagoana, escrita com o sangue de milhares de negros, índios e brancos, sabiamente aproveitado do catequista que além de teatralizá-la não se esqueceu de fixar certos preceitos religiosos como o da ressurreição.” Nesta versão os negros são todos mortos pelos índios mas o rei dos caboclos os faz ressuscitar com folha-de-mato, agora como escravos prontos para serem vendidos.17 Araújo aceita o modelo de historicidade do auto que o identifica com o acontecimento de Palmares, mas determina um elemento novo como criador da dança: o catequista. O episódio da ressurreição, presente na versão de Piaçabuçu, confirmaria a intervenção catequista.
Até aqui a polêmica em torno do Quilombo, no aspecto da historicidade, incide na possível origem histórica do auto nos acontecimentos de Palmares. Essa historicidade é percebida do ponto de vista da localização geográfica e da identificação dos prováveis criadores da dança. Quando os autores percebem a historicidade a partir da geografia, eles tendem a associar o tema do auto – o massacre de um mocambo de negros – com o lugar em que ela foi apresentada – interior de Alagoas, região onde sabe-se por evidência histórica que existiu o que ficou conhecido como o quilombo dos Palmares. Quando os autores percebem a historicidade a partir da tentativa de identificar os criadores da dança, tendem a enxergar influência branca, pois para eles trata-se de um folguedo em que os negros celebram sua própria derrota pelos índios. A animosidade entre índios e negros confirmaria definitivamente a origem do folguedo negro enquanto manipulação branca.
Referências:
Alfredo Brandão, Viçosa de Alagoas – o municipio e a cidade. Notas históricas, geographicas e arqueológicas, Recife, Imprensa Industrial, 1914.
Arthur Ramos, O Folclore Negro no Brasil, Rio de Janeiro, Civilizaçáo Brasileira1935
Oneyda Alvarenga, Música Popular Brasileira, Porto Alcgre, Globo, 1950, pp. 116 119. I7Alceu Maynard Araújo, Folclore Nacional -festus, bailados, tnitos e lendas, São Paulo,Melhoramcntos, 1964, pp. 387-389
Sobre o autor
Marcos Lima
Produz e divulga a sabedoria popular do povo alagoano e nordestino.