A Cultura Popular no Recôncavo

Grupo Folclórico Nego Fugido

A Cultura Popular no Recôncavo é um fragmento de pequenos mundos de culturas próprias que interligam-se num tronco sólido e comum. Cada região tem a sua história contornada de maneira diferente, porém agregada a uma só, que remete aos primórdios dos tempos brasileiros. As grandes e pequenas comunidades guardam extraodinárias reservas de patrimônio cultural. São universos onde o negro prepondera não só como contigente populacional, como também na participação e contribuição nas manifestações culturais que assumem expressões lúdicas e coreográficas, características da cultura africana.

A cidade de Santo Amaro possui entre seus espetáculos populares inestimável patrimônio de origem negro-africana, a Marujada e a Chegança de Mouros em Saubara e O Nego Fugido em Acupe são das muitas manifestações negras da região. O Nego Fugido, em especial, é uma manifestação única e singular no Recôncavo, originária do distrito de Acupe (Santo Amaro) esta centenária manifestação popular continua a encantar multidões com as suas apresentações espetaculares. O Nego Fugido é uma memória viva da escravidão no Recôncavo.

 Sobre o Nego Fugido

O Nego Fugido é um folguedo , mantido há pelo menos um século pelos moradores de Acupe, distrito de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Trata-se de uma encenação que recria a tentativa de fuga dos escravos, que são caçados e amarrados, para depois comprar sua alforria.

 É representado anualmente nas ruas de Acupe, pelos seus próprios moradores, todos os domingos do mês de julho e em datas festivas e especiais (como a festa Bembé do Mercado de Santo Amaro e os festejos do dia da consciência negra). Antes de adentrar nos detalhes do que se trata a representação do Nego Fugido, acredito ser importante situar histórica e socialmente esta manifestação popular.

A História do Local

 Sabe-se que o Recôncavo Baiano foi palco da colonização na Bahia, concentrando a maior parte de mão de obra escrava trazida da África para trabalhar nas plantações de canade-açúcar dos engenhos. Santo Amaro da Purificação era uma das cidades mais importantes do Recôncavo, e “estava entre os burgos da colônia que eram os orgulhos da Bahia” (Araújo, 1986: 81). Em 1837 fez-se Leal Cidade de Santo Amaro, tornando-se um dos principais centros de inteligência no preparo do movimento da resistência aos portugueses, que culminaria no Dois de Julho. O cultivo da cana-de-açúcar era a principal atividade da região, logo depois substituída pela cultura do fumo.

Diferente da cidade, que está a certa distância do mar, o Acupe é um distrito praieiro do município de Santo Amaro localizado num dos recortes mais profundos da Baía de Todos os Santos. A maioria de sua população vive da pesca rudimentar em saveiros e barcos, e da mariscagem nos mangues. O negro, pobre, predomina como componente demográfico.

1 Atividade ritual que se expressa como manifestação coletiva composta de elementos dramático, musical e coreográfico. O folguedo integra dimensões festivas, musicais, estéticas e dramáticas. O componente dramático, nem sempre explicitamente encenado, é sempre identificável nos trajes especiais, na organização de danças, cantorias, embaixadas, cortejos e na existência de personagens. As apresentações ocorrem em ruas e praças públicas, ou em terreiros e estádios, especialmente nos dias de festas do calendário litúrgico ou profano.

Quase toda a área do distrito de Acupe pertenceu a dois engenhos: O Engenho de São Gonçalo do Poço e o Engenho de Acupe. Com a abolição, os escravos deixaram o engenho de cana-de-açúcar e foram dedicar-se à pesca, abundante graças aos manguezais da região. Hoje não há vestígios destes dois grandes engenhos, o local onde ficava o Engenho de Acupe chama-se Acupe Velho, e é considerado como um lugar mal assombrado no imaginário popular, povoado de lendas que remetem ao tempo da escravidão. Muitas pessoas relatam ouvir gritos dos escravos sendo castigados no antigo engenho.

 O Recôncavo Baiano é um local de forte resistência do povo negro, visivelmente percebida tanto pela afirmação cultural e religiosa quanto pelos fortes traços físicos da afrodescendência. A representação do Nego Fugido mantém viva a história do lugar, onde ainda existe uma comunidade de pescadores, cujos integrantes descendem em sua maioria de escravos de origem Nagô2 . Através da encenação, que não se sabe ao certo como e quando surgiu, os moradores de Acupe dão uma versão diferente a história oficial de libertação dos escravos.

Surgimento da Manifestação A crença generalizada no local acredita que foi no Acupe que se concebeu o Nego Fugido, porém, sabe-se que em Santiago, na velha e histórica região de Iguape, pertencente ao município de Cachoeira, essa modalidade também era conhecida. Em Saubara também é certo que tenha existido. Mas atualmente o Nego Fugido só é encenado no distrito de Acupe.

 Como já foi dito anteriormente, a origem do Nego Fugido é desconhecida. Acredita-se que a manifestação tenha surgido na segunda metade do século XIX, devido a depoimentos dos mais velhos moradores do local, que recorrem às suas mais remotas lembranças passadas de geração a geração. Até hoje não se encontrou nenhum registro sobre a época exata das primeiras apresentações, muito menos documentos que comprovassem a sua existência em tempos de escravidão.

O nome “Nagô”, que originalmente se referia unicamente a um ramo dos descendentes Yorubá de Ifé, foi aplicado de maneira extensiva a todos os povos Yorubá. Os diversos grupos provenientes da África, principalmente do Sul e do Centro do Daome e do sudeste da Nigéria, são conhecidos no Brasil com o nome de Nagô. Os Nagô foram os últimos grupos africanos de escravos que chegaram ao Brasil. Isso ocorreu entre o fim do século XVIII e início do século XIX. Foram concentrados nas zonas urbanas do Norte e Nordeste, Pernambuco, Bahia, particularmente nas capitais desses estados: Recife e Salvador. A maioria da população baiana é de origem Nagô.

Segundo Ramos (1996, p.13), o Nego Fugido pode ser entendido como uma memória sobre a escravidão da população dessa região mais do ouvir falar. Através da tradição oral e da memória popular os habitantes de Acupe, reafirmam a história da libertação dos escravos como uma conquista dos negros e não uma simples concessão da Princesa Isabel.

 Ao contrário do que se pensa, a fuga retratada pelo Nego Fugido não é uma fuga de rompimento, uma fuga para os quilombos e sim uma fuga para o lazer. A fuga para o lazer não era só comum nos engenhos do Recôncavo, mas também ocorria nos engenhos do Rio de Janeiro e São Paulo.

Os escravos saíam de sua vivência de escravidão para namorar, tomar uma cachacinha, dançar e depois voltavam para sua vida de escravos, estes momentos faziam com que eles gozassem de sua liberdade. A fuga era o momento que o negro usava para o não ser escravo. Esse momento de brincar, beber, dançar, é o momento onde a relação senhor/escravo desaparece, porque ele vive a liberdade, ele canta, ele dança, ele festeja, ele não tem senhor. (Ana Maria de Aragão Ramos, Documentário Bahia Singular e Plural TVE, 1999).

Composição e Caracterização

 O Nego Fugido é uma espécie de teatro popular de rua desenvolvido pela a ação de 30 a 60 figurantes, que incluem os Negros que são os escravos fujões, também chamados de “negas”, antes interpretados por adultos, hoje por meninos, Caçadores (perseguidores de Negros, que usam como indumentária a saia de folha seca e as espingardas com espoletas), o Capitão do Mato, o Rei, os soldados (guarda do Rei) e a Madrinha, única mulher, uma alusão à Princesa Isabel, com a função de estabelecer a concórdia, ou seja, sela a paz.

A inclusão da mulher e das crianças deu-se muito tempo depois, através de releituras da manifestação. O papel da mulher ganhou importância a partir da incorporação de Edna Correia Bulcão, a Dona Santa, que faz o papel da madrinha e hoje dirige o grupo, sendo 16 responsável pela guarda dos materiais de apresentação do Nego Fugido. A partir de então, a figura feminina passou a ocupar uma posição de destaque na encenação.

Nesta encenação fundem-se elementos de dança, canto, declamação e música instrumental numa ação de muita complexidade e movimento, que possui uma representação caricatural que assusta os que não estão acostumados com a impressão de transe coletivo dos integrantes. Os atores comunitários exageram na caracterização dos personagens para obter mais dramatização. O Nego Fugido não é dirigido, as expressões, os gestos, as coreografias não são dirigidas. O sentido coletivo e a integração são alcançados graças à vivência secular passadas de geração a geração.

Os próprios integrantes trabalham na preparação do figurino e da maquiagem. Tudo começa com a escolha da palha seca de bananeira de onde irão ser confeccionadas as saias dos caçadores. A maquiagem é feita de carvão e óleo de cozinha que são passados no rosto e no corpo. Na língua, para dar o efeito de sangue, os adultos usam papel crepom vermelho e as crianças suco em pó artificial sabor morango. Chapéus de vaqueiro, coletes de couro e espingardas de pressão completam a indumentária dos capitães do mato.

A Encenação da Saga

Inicia-se o espetáculo com o canto dos Negros, marcado pelo som de atabaques, a dramatização começa com o batuque e com a dança. Os Negros fazem festa (a prática de fugir para dançar, comer e beber, era comum na época da escravidão) e neste momento da cena, os Negros comemoram a sua liberdade. O toque dos atabaques e a entoação dos versos dão início à dança dos escravos:

Cativeiro de Iaiá

 Dá licença iaê maioquê

Cativeiro de Iaiá

 Dá licença iaê maioquê

O momento seguinte é a chegada dos caçadores que importunam os fugitivos, desferindo-lhes tiros, hoje espingardas providas de espoletas, antigamente se usavam 17 imitações destas armas feitas de madeira. A liberdade do batuque dá lugar à ameaça do cativeiro, e o escravo fujão é agora alvo da captura. Os Negros saem correndo pelas ruas de Acupe, os Caçadores saem numa corrida desenfreada à captura dos negros. No cerco, os Negros, escravos, são atingidos e caem, ocasião em que os Caçadores os prendem, amarrando-lhes as mãos com cordas. Junto aos Caçadores, os escravos capturados com os pés descalços, usando calções azuis e rostos pintados, cantam umas das cantigas:

Carneirinho morreu

 Foi ni lagoa cheia

Que bichinho pequeno

 De tamanha oreia

 Berra carneiro, bé

 Torna a berra, bé

 Limão-da-Costa, bé

 Cravo-da-Costa, bé

Após a prisão, os Negros, ou “negas” percorrem as ruas, solicitando de casa em casa contribuição para comprar a sua carta de alforria3 . Neste momento dizem, repetidamente, ajoelhados aos pés das pessoas interpeladas: “sorta a nega iaiá/ioiô! sorta a nega iaiá/ioiô!” Uma fala restrita em relação ao que se tinha nas representações mais antigas. No passado além de se fazer a súplica para a contribuição em dinheiro, o escravo, mencionava as suas habilidades domésticas:

Sorta a nega iaiá/ioiô! Sorta a nega

A Nega é boa, nega sabe trabalhar:

nega lava prato, nega faz o que ioiô/iaiá quiser pra fazer

sorta ioiô/iaiá, sorta!

 sorta que eu sou boa nega, sou boa nega!

A importância recolhida é entregue ao Rei, preferencialmente todos os escravos deveriam ter fundos para entregar ao rei, e daí então, retornar ao batuque que se reiniciava, numa rua próxima. A quantia arrecadada durante as apresentações é aplicada na aquisição de material para futuras apresentações e nas despesas da festa, como o almoço que é oferecido no último dia da apresentação, onde ocorrerá o desfecho final. Esta parte do espetáculo se repete em diferentes lugares do Acupe. É importante notar que nos primeiros três domingos a manifestação é interrompida na parte de recolhimento do dinheiro. A representação completa é feita no último domingo.

 Na representação do Nego Fugido, o rei se nega a conceder a carta de alforria aos escravos, então começa a revolta dos negros contra o rei por conta da recusa, neste momento até os caçadores se unem aos escravos. Esta é a última parte da representação, constitui-se da negociação de liberdade dos escravos, que ocorre em meio a um tumulto. Os escravos em coro começam a gritar “quero a carta de alforria”, ao mesmo tempo prendem o rei e os soldados. A luta cessa mediante a intervenção da única personagem feminina, a Madrinha, que tem o papel de apaziguadora e deve mostrar-se coroada, vestida de branco e portar uma bandeira branca simbolizando a paz.

 Um dos soldados foge. Escravos e caçadores saem em busca da carta de alforria que supõem estar nas mãos do soldado fugitivo. O soldado é capturado. Pressionado, o rei concede as cartas de alforria e solicita ao capitão do mato que a leia para o público presente:

Senhores e senhoras, em ordens de pena de morte do nosso rei, foi entregue ao capitão do mato a carta de alforria em libertação dos escravos. Como todos sabem, na época do descobrimento do Brasil, os negros vieram para trabalharem como escravos na lavoura aqui no Brasil, até que no dia 13 de maio, a Princesa Isabel libertou os escravos com a Lei Áurea. Hoje nós estamos apresentando em nosso folclore para todos um terço do símbolo da nossa escravidão. Muito Obrigado! (RAMOS, 1996 apud CARTA DE ALFORRIA DO NEGO FUGIDO, p.30)

Então o espetáculo termina com a libertação dos Negros, e do próprio Rei. A conquista da liberdade é o grande final da representação, todos dançam, cantam e comemoram dando final a saga.

A Música do Nego Fugido

Os personagens que representam os Negros, quando não estão correndo ou lutando, ficam em espécie de dança lenta, ao ritmo da música. No decorrer do espetáculo, toques e cânticos de candomblé são normalmente utilizados pelos instrumentistas e cantadores, com o propósito de animá-los.

A música do Nego Fugido tem o som de atabaques e agogô, é uma mistura de samba de roda e candomblé, a raiz africana é a sua principal característica. As letras mesclam português com yorubá:

Ê que, que sapo quer Apolo

 Sapata mambodé arcanfô

 Que sapo quer apoló

Sapata manibodê arcanfô

 Sapo quer apolo/sapata manobodê arcânfo

A musicalidade do Nego Fugido é uma preciosidade, porque é uma música do candomblé fora do candomblé, o que é uma raridade, pois todas as músicas do candomblé são sagradas e só podem ser cantadas nos cultos.

 No caso da manifestação trata-se de uma transformação da música de culto do candomblé em uma música profana. Do candomblé o Nego Fugido adquiriu toda a sistemática da música, instrumentos, construção da melodia, padrão de voz, a ginga no cantar, transformando-se em uma música a parte, que hoje narra uma saga.

Fonte: www.facom.ufba.br

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