Téo Brandão
Um folguedo reputado como característico das Alagoas e, no consenso da maioria dos estudiosos brasileiros, interpretado como uma sobrevivência histórica da célebre Trola Negra que se estabeleceu em terras da então capitania de Pernambuco, é o auto ou dança dos quilombos.
Pedro Nolasco Maciel que a ele primeiro se referiu, bem como Alfredo Brandão e Artur Ramos que o fixaram em descrições consideradas clássicas, afirmaram categoricamente que o auto relembrava os quilombos que se estabeleceram, durante o domínio holandês, na serra da Barriga ou do Barriga e adjacências, durante quase um século, e que foram, após numerosas expedições, destruídos pelas forças conjugadas do cabo dos paulistas — mestre de campo Domingos Jorge Velho e do capitão-mor da capitania de Igarussu — Bernardo Vieira de Melo: “Era aquilo um brinquedo tradicional que renovava os quilombos dos Palmares” (Pedro Nolasco Maciel). “É uma festa puramente alagoana que relembra um dos fatos mais importantes de nossa história — a guerra dos Palmares” (Alfredo Brandão). “As populações alagoanas das imediações da serra da Barriga e dos vales do Mundaú e do Paraíba até hoje guardam a lembrança, nos autos folclóricos, etc.” (Artur Ramos).
Todavia, a verdade é que tais populações não ligam o folguedo que encenam a tal sucesso histórico. O próprio Artur Ramos, atribuindo o fato à sobrevivência no inconsciente coletivo ou folclórico, confessa que “eles ignoravam por completo a significação do auto dos quilombos. Ou procuravam uma explicação qualquer, mas sem a menor ligação com a epopéia palmarina”. Constatação que ainda hoje se pode fazer. Por exemplo o ensaiador e rei dos caboclos do quilombo apresentado em Maceió, por ocasião da IV Semana Nacional do Folclore — o Carmelinho, nos dizia que o “brinquedo” fora inventado por causa dos três Reis Magos (?). Como houvesse o rei dos negros se casando com uma menina alvinha, o rei dos caboclos, com inveja, pois não encontrava moça para se casar resolveu, combater os negros para roubar-lhe a rainha e se casar com ela.
Fato, entre outros, que levou Renato Almeida e Oneida Alvarenga a apresentarem ressalvas ao autoctonismo alagoano do auto e à sua pretendida origem palmarina.
Estranhando a circunstância de celebrar o folguedo uma luta de negros e índios que nunca tiveram entre si rivalidade ou ódio, e o fato raro e esquisito de comemorarem aqueles num auto sua própria derrota, tentou Renato Almeida explicar a incongruência pelo desvio para o índio (participante de alguns dos troços de invasores palmarinos) da animosidade que deveria ser dirigida para os brancos. Oneida Alvarenga sugere também dúvidas sobre a ligação do auto com os quilombo dos Palmares sobretudo ao assinalar sua semelhança com os cucumbis ou quicumbres que, segundo Guilherme P. de Melo, celebram lutas entre negros foragidos e índios que os vendiam. Informação fidedigna de nosso colaborador tenente Manuel Euclides nos confirma que em Propriá o folguedo tem o nome de cacumbi. Muito provável, pois, a sugestão de Oneida Alvarenga sobre a terminação primitiva do auto pela vitória dos negros, modificada talvez por algum branco que ajustou o auto já denominado de quilombo à realidade ou quase realidade da história palmarina. E, porventura, até mesmo brancos eruditos tenham batizado com o nome de quilombo a folguedos em que havia combates de negros e índios, fazendo o ajustamento histórico como parece terá acontecido com vários outros autos do Brasil. Ainda agora no inquérito procedido pelo IBGE — Delegacia de Alagoas, obtivemos dados de um caboclinho de Porto Calvo em que há dois partidos — um de índios e outros de negros que se degladiam.
De qualquer modo por que se o encare, seja qual for a sua origem real, o auto é ainda uma tradição viva em nosso estado, embora não tão insistente quanto a de outros autos como guerreiros e pastoris. Através do citado inquérito sobre folguedos populares de Alagoas a nosso pedido levantado pela Delegacia do IBGE — nos anos de 1950, 1951 e 1952, foi possível registrar sua presença nos municípios de Água Branca, Arapiraca, Junqueiro (zona sertaneja); Murici e União (zona da mata); Maceió e Rio Largo (zonas litorânea central); Penedo (zona do São Francisco). Essa distribuição em várias zonas já está a indicar sua grande difusão mesmo nos tempos atuais.
Informações pessoais ou referências escritas sobre o folguedo permitem-nos aumentar com mais segurança e realidade a extensão do mapa folclórico do folguedo nas Alagoas: (Viçosa, Atalaia, Capela (zona da mata); Palmeira, Quebrângulo e Santa do Ipanema (zona sertaneja); Maragogi e Passo de Camaragibe (litoral norte); Pilar e Marechal Deodoro (litoral centro); São Miguel e Coruripe (litoral sul); Piaçabuçu (zona do São Francisco).
Na capital, o folguedo ocorre, com períodos variáveis de ausência, em vários arrabaldes e circunscrições: Fernão Velho, Tabuleiro dos Martins, Trapiche da Barra, Ponta da Terra, Alto do Jacutinga, etc. Aliás, é deste bairro, então formado quase por duas ou três ruas, que temos a primeira referência escrita sobre o auto, no jornal “Cruzeiro do Norte” de 27 de janeiro de 1893. Noticiando a festa de São Gonçalo do Alto do Jacutinga se diz que: “funcionará um quilombo em frente à capela e o brinquedo dos galos”.
Note-se que aí o folguedo se realiza numa festa fora da época natalina. É que com as cavalhadas é dos únicos folguedos que não são exclusivos do Natal mas aparece em quaisquer festividades públicas, nas festas dos órgãos, nas grandes festas religiosas das cidade e povoados do interior e até mesmo sem festas, em funções promovidas por donos de botequim e bares que se valem da diversão para atrair aos seus estabelecimentos o público que freqüenta, aprecia e assiste comumente o folguedo.
É natural que assim seja. Como a maioria de nossos autos, o quilombo é ensaiado e integrado por gente do povo, pela arraia-miúda — pequenos trabalhadores, mercantes, operários ou marginais: brancos, mulatos, pretos, caboclos ou cafusos. E a própria assistência, se outrora podia comportar elementos das classes mais elevadas das vilas e cidades — senhores de engenho, negociantes e pessoas de prol, atualmente quase que consiste em pessoas de categoria média ou inferior — pequenos funcionários, empregados domésticos, pessoas apenas remediadas, etc.
As descrições clássicas e mais conhecidas do quilombo são as de Alfredo Brandão em Viçosa de Alagoas, e de Artur Ramos em Folclore negro do Brasil.
Mas, ao seu lado embora mais sucintas, outras referências existem sobre o auto: a de Pedro Nolasco Maciel no romance de costumes editado em 1890, Traços e troças onde descreve um quilombo em Fernão Velho; a de Félix Lima Júnior, no seu excelente artigo sobre o Natal em Bebedouro (Jornal de Alagoas, 1950) e a de Oscar Silva, no artigo Os quilombos publicado no mesmo jornal registrando o auto em Santana de Ipanema.
Mais completa e com pormenores inexistentes nas versões até então publicadas, é mesmo com a tradição da maior parte do estado, é a do folclorista paulistano Alceu Maynard de Araújo publicada no Jornal de Alagoas e comunicada à Comissão Nacional de Folclore, colhida em Piaçabuçu onde o arguto e operoso pesquisador fez pesquisas antropológicas e sociais para a Comissão do Vale do São Francisco.
A versão que procuramos dar, sistematizando melhor a descrição do auto, foi colhida através de Camelinho, de Bebedouro, organizador do grupo apresentado na IV Semana Nacional do Folclore, em 1952, no arrabalde de Bebedouro.
Aí na grande praça que foi o palco tradicional das mais animadas festas natalinas do estado e que tem o nome do seu saudoso animador — Bonifácio Silveira, arma-se o rancho dos negros — uma barraca de paus roliços, aberta e cercada de palhas. À sua frente, planta-se o jardim ou sítio — uma carreira de bananeiras, mamoeiros, ladeando a entrada. Bandeirolas de papel, palhas de coqueiro, bambus, plantas diversas, ornamentam o “sítio” e o rancho, e dão-lhe um ar mais festivo e alegre. No outro lado, fica o abrigo dos índios ou caboclos — tapume de varas fechado de palhas de coqueiro ou galharia de árvores.
E atrás, destaca-se na sua alvura de cal e na singeleza de suas linhas a velha matriz de Santo Antônio, pano de fundo de tantas tradições populares.
É geralmente assim, numa praça, largo ou numa rua de mais amplas proporções que se exibe o quilombo pois sua ação que implica em lutas combates de espadas, correrias, danças etc., necessita amplo espaço.
Folguedo de entrecho simples, com pouquíssimas cantigas e certa independência de ação dos figurantes dentro do desenvolvimento quase inalterável do auto, não necessita ele quase de ensaio ou preparo prévio como as outras danças dramáticas em que há lutas de espadas (reisados, guerreiros, caboclinhos). Mesmo porque seus ensaiadores são geralmente velhos dançadores que aliciam também pessoas hábeis como figurantes.
Estes, eram em Maceió, em 1952, no quilombo de Camelinho: o rei dos negros, o dos caboclos, a rainha dos negros, a mamãe velha ou catirina, o papai velho, o vigia dos negros, o espia dos caboclos, o vassalo dos índios, e, por fim, negros e caboclos num total de 18 figurantes para cada troço. Já em Viçosa, Alfredo Brandão anotava no começo do século, apenas os dois reis, a rainha, os caboclos e os negros; e Maynard Araújo registra em lugar dos vigias e espias — os secretários dos dois reis e o pai do mato em vez do pai velho. E também um “entremeio” ou “bicho” — a onça.
Quanto aso trajes e implementos constam de calças curtas de mescla azul, camiseta branca, sem mangas, chapéu de palha de ouricuri, foice de madeira pintada, para os negros. Para os caboclos — calção e camisetas tintos de roxo terra, cocar, tanga, braceletes e pulseira de penas, apetrechos de penas, apetrechos característicos de índios (cabaças, cuias, arcos e flechas). Os reis trajam-se como reis de reisado ou guerreiro: camisa e calções de ciré, capa da mesma fazenda enfeitada de cepiguilha dourada e prateada, guarda-peito enfeitado de espelhos, coroas de aljofar, ouropel colorido, areia brilhante e espelhos, espadas da antiga guarda nacional.
A rainha veste-se de branco, levando também guarda-peito de espelhos, capa amarela comprida e diadema de papelão pintado.
A catirina (homem travestido de mulher) usa saia e casaco de florões, pano de cor amarrado na cabeça e pinta-se de tiana de panela.
O papai velho ostenta cabeleira e barba brancas, cajado e foice nas mãos.
(Brandão, Téo. “O auto dos quilombos”. Diário de Notícias, 19 de Junho de 1955)