A cultura negra para além da escravidão

Foi nas péssimas condições descritas em Navio Negreiro que legiões de africanos negros – advindos da Nigéria, Gana, Serra Leoa, Benin, Angola, Congo e Moçambique – foram forçados a cruzar o Atlântico para servirem de escravos por mais de trezentos anos no Brasil. Essa é a cicatriz mais perversa da sociedade brasileira. Os negros, que tiveram sua carne transformada em coisa e o espírito em mercadoria em nome do capitalismo, eram, antes disso, um povo diverso, que possuía e possui uma cultura tão rica como qualquer outra. O imaginário popular ainda pensa no negro apenas como enclausurado da escravidão, o que é um pensamento estereotipado, limitado e perverso, que busca minar a importância do negro e do seus descendentes para construção da nação brasileira.

Não apenas os relatos de sofrimento diante das chibatas na clausura desumana das senzalas, mas a história de seus feitos, suas glórias e sua ascensão na sociedade. É imprescindível mostrar o legado dos negros africanos e evidenciar o afro-brasileiro como artista, artesão, e seguidor de sua cultura, tão poderosa e duradoura. A influência cultural da matriz africana pode ser vista nas mais diversas esferas da cultura brasileira.

O negro e a construção da sociedade brasileira

A população negra constitui , hoje, a maior parcela numérica da sociedade brasileira, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), em 2014, os negros compunham 54% da população brasileira. Mais do que isso, possui uma importância enorme para construção do Brasil. Segundo o professor de Ciências humanas da Universidade Federal do ABC, Flávio Thales Ribeiros, no universo do trabalho, foi o grupo responsável pelo desenvolvimento material do país, realizando a maioria das funções nas principais cidades brasileiras.

No século 18, os saberes técnicos sobre, por exemplo, metalurgia e marcenaria, ourivesaria, plantação, colheita e  construção de máquinas de engenhos eram transmitidos pela oralidade de africanos para seus descendentes, o que construiu um legado fundamental para compreender a história do desenvolvimento tecnológico do Brasil. A contribuição do povo é inegável, mesmo que ainda sejam escassos os estudos acerca do assunto.

A estudante de Jornalismo Catarina Virgínia, afro-descendente, explica que essa falha vem desde a escola, onde somos ensinados, de maneira bastante superficial, de que a história do negro limita-se à escravidão. Ao invés das escolas explorarem a cultura, a história e a filosofia negra, somos ensinados que os europeus são patenteadores da cultura e da tecnologia, excluindo qualquer visão que valorize a cultura negra ancestral e sua individualidade.

Influências do negro na mesa e linguagem do brasileiro

Com a vinda dos negros para o país, seus costumes também vieram. Costumes esses que podem ser degustados e apreciados na culinária brasileira. A feijoada que muitos amam comer nos finais de semanas é um prato que foi criado por negros africanos. Mas não só isso, leite de coco, pimenta malagueta, gengibre, quiabo, amendoim, mel, castanha, ervas, azeite de dendê e feijão preto são verdadeiras especiarias não conhecidas antes da chegada desse povo.

Pratos juninos como o vatapá, consumido muito na Região Nordeste, é legado da cultura afro-brasileira. O caruru, feito à base de quiabos; abará, um bolinho de feijão; abrazô, um bolinho de mandioca ou  milho; o acaçá, produzido à base de farinha de milho; o acarajé, elaborado com feijão-fradinho, cebola e sal, e frito em azeite de dendê; caldos; cozidos; a galinha de gabidela; o angu; a cuscuz salgada e a famosa moqueca são muitos pratos africanos e afro-brasileiros conhecidos e apreciados aqui. Pratos doces como canjica, mungunzá, quindim, pamonha, angu doce, doce de coco, doce de abóbora, paçoca, tapioca, bolo de milho e bolinho de tapioca também representam e explicitam  o sincretismo cultural da nossa culinária.

Segundo o historiador Rafael Domingos, formado pela Universidade de São Paulo, a influência do povo na culinária do país traz um legado imensurável. Mas não só na gastronomia, nossa realidade está permeada de Áfricas, de diásporas que podem ser vistas nos rostos das pessoas, na nossa língua, música, literatura, arte e outros. A lista é grande, já que as dimensões das influências africanas constituem a formação do próprio ser brasileiro.

Quando se fala do português brasileiro, também é válido falar do português afro-brasileiro. Isso mesmo, o campo da linguagem recebeu muita intervenção dos africanos, um povo que não possui apenas uma língua, mas grande quantidade de dialetos. As línguas angolanas de origem banda – quicongo, quimbundo e umbundo – são as que mais influenciaram a fala do brasileiro, principalmente nas regiões Norte e Sul. Bunda, caçula, cochilar, marimbondo, moleque, samba, xingar, batucar e cangaço são algumas palavras de origem banda que influenciaram o idioma do país. Como se pode ver, a África não é só uma, mas muitas dentro de um continente. Marcelino Francisco, moçambicano nascido na cidade da Beira, atesta dizendo: “a variedade linguística é algo a se notar na nossa cultura e na nossa terra.”

A música, religiosidade e as festividades 

A influência cultural africana no processo de formação cultural do Brasil abrange e delinha todos os campos artísticos. O frevo, a lambada, o axé e o samba, com letras simples e ritmo repetitivo, davam início ao famoso carnaval de rua. As danças de roda – com cantos, palmas e conjunto musical – e o surgimento da Música Popular Brasileira, no século 18 nas cidades de Salvador e do Rio de Janeiro, são marcas registradas dos africanos e dos seus descendentes no Brasil.

Chiquinha Gonzaga – mulher, compositora e neta de uma escrava liberta – ao som de “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós” inseria, na música e nas marchinhas de carnaval, ritmos e coreografias da cultura africana. O batuque, manifestação afro-brasileira embalada pela música, e a dança, como adoração aos orixás, foram adaptadas à religião católica ao serem realizadas em rituais e festas em homenagens a santos. Na cultura africana, a música e a dança sempre tiveram uma ligação com o mundo religioso.

Ogum deus da guerra, Omolu deus das doenças, Xangô deus do trovão e da justiça, Oxum deusa das fontes e da beleza, Iansã, Iemanjá deusa dos mares e oceanos e Oxalá deus da criação são alguns dos deuses da matriz africana. A umbanda e o candomblé, a canonização de santos negros como Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito são exemplos da riqueza das religiões africanas e do sincretismo.

No Brasil, para onde cerca de quatro milhões de africanos escravizados foram trazidos, é difícil não identificar elementos das culturas negras nas festividades populares – em especial nos estados onde se estruturou grande parte da força de trabalho. Segundo o professor Flávio, “no Maranhão existe o tambor de crioula e a festa do boi; no estado de Minas Gerais e, em algumas cidades do interior de São Paulo, as congadas revelam as marcas deixadas pelos povos africanos.”

Escolas de samba e os blocos afros de Salvador são as organizações culturais mais marcantes no imaginário social dos brasileiros. As relações escravocratas comprometeram a reprodução do conhecimento africano na esfera material, mas foram incapazes de varrer as culturas africanas. Flávio enfatiza que, nos Estados Unidos, por exemplo, os instrumentos africanos desapareceram, mas as expressões africanas emergiram no protestantismo negro e em algumas expressões musicais afro-americanas como o Blues.

Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros… estalar de açoite… 
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs!
(Castro Alves, Navio negreiro.)

Por Beatriz Carneiro, em Jornalismo Junior

Fonte: www.racismoambiental.net.br

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