Lia de Itamaracá, Rainha da Ciranda

Soberana, feito uma deusa surgida das águas do mar ou uma rainha plena de realeza, é assim que Lia sempre aparece, levando-nos ao prazer de ouvir e dançar uma ciranda. Sim, porque ninguém fica imune ao ritmo da ciranda, muito menos aos encantos da filha de Iemanjá, que se habituou a cantar desde criança, na praia de Jaguaribe, localidade da Ilha de Itamaracá onde nasceu em 12 de janeiro de 1944 e vive até hoje. Cheia de familiaridade com a música e a dança, Maria Madalena Correia do Nascimento começou a carreira artística muito jovem, cantando ciranda desde os 12 anos. A filha de Severino Correia do Nascimento e Matildes Maria da Conceição é a mesma Maria, ou Lia, da música que se transformou num hino: Essa ciranda / quem me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá.

A história dessa deusa de ébano, de um metro e oitenta, não é só feita de glamour. Após permanecer quase duas décadas no ostracismo, lança em 2000 o CD Eu sou Lia, que recebe selo de world music, graças à mescla de instrumentos de percussão e sopro aos ritmos populares, e, por isso, chega a ser comercializado nos Estados Unidos e na Europa. Nessa nova etapa de divulgação do trabalho, Lia passa a viajar constantemente pelo Brasil e pelo continente europeu, e, ainda assim, não é difícil vê-la nas rodas de ciranda do Recife e Olinda, ou em Jaguaribe, onde funciona, à beira-mar, o Espaço Cultural Estrela de Lia, sob o efeito mágico da envolvente paisagem marinha, com direito a lua, pancada do mar, cheiro de maresia e brisa balançando os coqueiros.

Nesse ambiente, Lia tem recebido, aos sábados, e desde novembro de 2004, diversos artistas, como Cátia de França, Célia coquista, a Ciranda de Baracho (das filhas do mestre, Dulce e Severina Baracho), Antúlio Madureira. Mas, diferentemente do bem-sucedido ressurgimento, antes a artista havia produzido apenas um LP, A rainha da ciranda, gravado pela Rozemblit em 1977, do qual lembra não ter recebido nada. Quando foi cozinheira de um restaurante na ilha, também cantava no local. Freqüentava outras rodas de ciranda, esporadicamente, sem nenhuma projeção fora de restrito circuito de aficcionados da cultura popular. A partir dos anos 80 passa a ser merendeira da Escola Estadual de Jaguaribe, profissão que seguiu exercendo, paralelamente à carreira artística.

A volta triunfal ao mundo da música se deu graças à atuação do produtor Beto Hees, que a levou, em 1998, a participar do festival recifense Abril pro Rock, onde foi aplaudida por doze mil pessoas. Daí em diante, sobretudo a partir de 2000, passou a fazer turnês pelo Brasil e exterior, com os shows do primeiro CD, gravado pela Ciranda Records, que contém composições dela própria, de cirandeiros do Recife, de compositores renomados e algumas de domínio público. Cinco músicas foram gravadas ao vivo em 1998, no Rio de Janeiro, durante participação no projeto Vozes do Mundo, do Centro Cultural Banco do Brasil. Quase uma década depois desse lançamento, sai em 2008 o segundo CD, Ciranda de ritmos, com direção musical de Carlos Zens, e destaque para Bezerra do Sax, as filhas de Baracho e uma composição de Capiba.

Conforme indica o título, o disco contempla outros ritmos pernambucanos para além da ciranda: frevo, coco, maracatu. Mas, claro, quem permanece reinando é a majestosa cirandeira. Habituada, há mais de cinquenta anos, ao convívio com mestres da ciranda, Lia sempre faz questão de lembrar que Baracho era um grande amigo. É dele a ciranda: Morena vem ver / que noite tão linda / a lua vem surgindo / cor de prata. // Faz-me lembrar / da minha Maria / quando pra ela / eu fazia serenata. No embalo da ciranda e das afinidades eletivas, Baracho e Lia compartilhavam três importantes aspectos: boa voz, presença marcante na hora de puxar a roda e habilidade no tratamento dos temas, como o do amor.

O convívio artístico, entretanto, não se resumiu aos experientes cirandeiros. Teca Calazans, Edu Lobo, Clara Nunes, Geraldo de Almeida, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola, entre outros, são alguns dos grandes nomes da música brasileira que já cantaram Lia em versos próprios, em composições da cirandeira ou de outros. Essa ciranda quem me deu foi Lia é a mais antiga, de 1960 para 1961, e foi gravada por Teca Calazans. Paulinho da Viola também ofereceu versos bonitos para a negra mais elegante dentre todos os ilhéus: Eu sou Lia da beira do mar / morena queimada do sal e do sol / da Ilha de Itamaracá (…), música incluída no primeiro CD. O convívio artístico também levou a dama da ciranda por outras veredas, como a de estrela do curta-metragem Recife frio, de 2009, dirigido e realizado por Kleber Mendonça Filho.

Com o porte e a realeza da soberana Iemanjá, a artista comanda as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia, transformado desde 2008 em Ponto de Cultura, onde são oferecidas oficinas de arte, cerâmica, percussão, fotografia, malabares, rabeca, teatro, cavalo-marinho. Permanecem, ainda, as temporadas de apresentação artística: recitais poéticos, bandas alternativas, duplas de violeiros, filhas de Baracho, e, claro, a tradicional ciranda de Lia. Toda a programação cultural é gratuita e sempre conta com o envolvimento da comunidade local, ou seja, os habitantes da Ilha de Itamaracá, e especificamente os da praia de Jaguaribe. Em franca ebulição, o Ponto de Cultura foi contemplado, no início de 2009, com o prêmio Interações Estéticas e Residências Artísticas, numa parceira da Fundação Nacional das Artes (Funarte) com o Ministério da Cultura (Minc). Quem mais se beneficiou foram os habitantes da localidade, com as oficinas promovidas pelo mestre rabequeiro Luiz Paixão e pela atriz Cinthia Mendonça.

Por onde viaja, Lia de Itamaracá vai somando os elogios que tem recebido também na própria terra. É chamada de deusa, rainha. Na França, um jornal comparou-a à cabo-verdiana Cesária Évora. No Brasil, é constantemente relacionada a Clementina de Jesus, sobretudo no sul e Sudeste. No mesmo local em que nasceu, frequentou escola primária e assistiu a muito coco de roda, ciranda, pastoril e bumba-meu-boi. Não teve iniciação musical com ninguém, foi aprendendo sozinha, inspirando-se na paisagem iluminada da ilha, nos jangadeiros que saem para o alto-mar e vêm trazendo peixes, nas ondas salgadas que quebram na praia, na brisa marinha que tem lhe soprado aos ouvidos umas rimas, sussurrando-lhe quantas estrelas tem o céu e quantos peixes tem o mar. Versos e balanço encadeados pela percussão e sopro realçam a voz rascante de Lia, “uma diva da música negra”, conforme noticiou o New York Times. A deusa da ciranda sabe envolver-nos todos, plena de generosidade e magnetismo, até quando empresta a voz ao genial Capiba: “minha ciranda não é minha só, é de todos nós, é de todos nós”.

Dentre os títulos que conquistou estão o do Ministério da Cultura, que instituiu o Ponto de Cultura Lia de Itamaracá, e o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2005.

Fonte: Amorim, Maria Alice (2014),  Patrimônios Vivos de Pernambuco; 2. ed. rev. e amp – Recife: FUNDARPE

 

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