Contribuições de Florestan Fernandes
É necessário reconhecer que Florestan também se preocupou com a prática em sala de aula, com ênfase em três pontos: o professor como mero transmissor do saber, que, para ele, fragilizava o profissional da educação; a idéia de que o aluno é apenas receptor do conhecimento, quando o aprendizado deveria ser construído conjuntamente na escola; e o ensino discriminatório, que trata o aluno pobre como cidadão de segunda classe. Para ele, a 53 educação transformadora se faz com uma escola capaz de superar o autoritarismo, a hierarquização e as práticas de servidão.
Neste sentido, o folclore frente à escola nos provoca a pensá-lo como objetivo primordial de enriquecer as experiências de aprendizagem no seu todo. Vale ressaltar que Florestan Fernandes investigou folclore enquanto socialização da criança através de jogos e brincadeiras. Por este viés, é pertinente notar que a criança, através de suas inserções e práticas, constrói seu processo de ensino-aprendizagem emergindo ações coletivas que focam a socialização como ponto crucial para a construção de seu sujeito histórico, social e cultural.
Sobre esse aspecto, ele chama a atenção para o fato de que tendo as oportunidades de interação social das crianças, a aprendizagem é importante para seu amadurecimento como ser social e que a criança aprende a ser socius família e em outros grupos primários. Ao analisar educação e folclore, Garcia 16 (2000), diz que o valor educativo do folclore não tem sido suficientemente aproveitado pela escola. Essa mesma reflexão é feita por Fernandes (2003) quando questiona se a criança aprende alguma coisa através dos folguedos que pratica, com as cantigas de acalanto, as adivinhas ou os contos populares e refere-se a folclore como “relíquia” do passado longínquo e que deveria ser preservado não por ser importante e sim por mérito de ser preservado através da veneração dos costumes e das tradições do povo.
Nos dias de hoje a postura de somente venerar o passado para preservá-lo é questionada já que o valor educativo está nas conexões psicossociais do folclore. Nas atividades folclóricas há diversão, assim como há uma mentalidade que se mantém, que se revigora e que orienta o comportamento ou atitudes do homem. Através delas as pessoas não só participam de um sistema de idéias, sentimentos ou valores, mas agem e pensam em função dele. Os sociólogos analisam a continuidade das culturas nas gerações e nos diferentes grupos sociais e recorrem à noção de socialização que é entendida como sendo o processo de integração de um indivíduo a uma dada sociedade ou a um grupo pela interiorização dos modos de pensar, de agir, de sentir, ou seja, dos modelos culturais próprios a esta sociedade ou grupo.
Logo, pela educação cada sociedade transmite aos indivíduos que a compõem o conjunto de normas sociais e culturais que garantem a solidariedade entre todos os membros desta sociedade e que estes acabam por adotar. 16 Doutora em Musicologia/Etnomusicologia (Université Lumiére, Lyon, França), Mestre em Educação e Especialista em Etnomusicologia e Folclore (INIDEF, Caracas, Venezuela).
É significativo destacar que não há inércia cultural quando a criança brinca de algum folguedo do passado e há continuidade sociocultural em que se mudaram os contextos históricos – sociais, no entanto, foram preservadas as condições que asseguram a vitalidade e influência dinâmica dos elementos folclóricos. Isso reafirma que há valor educativo em dois planos: primeiro, no das relações humanas em que a criança precisa organizar coletivamente o seu comportamento no que diz respeito ao brinquedo a ser executado; segundo, que cada um dos jogos ou dos brinquedos envolve composições tradicionais e gestos convencionais, as quais mantêm representações da vida do homem, dos sentimentos e dos valores, colocando a criança em contato com o mundo simbólico e um clima moral que existe e se perpetua através do folclore.
Fernandes observa que Pelo jogo e pela recreação, a criança se prepara para a vida, amadurece, para tornarse um adulto em seu meio social. Nos dois planos mencionados, são variáveis as influências socializadoras do folclore, como se poderia descrevê-las positivamente. De um lado a criança aprende a agir como ‘ser social’ a cooperar e a competir com seus iguais, a se submeter e a valorizar as regras sociais existentes na herança cultural, a importância da liderança e da identificação como centros de interesses suprapessoais, etc. Por outro lado, introjeta em sua pessoa técnicas, conhecimentos que se acham objetivadas culturalmente (2003, p. 66).
A visão de folcloristas, de cientistas sociais e de pedagogos é de que a criança, através da experiência, aplica o que aprende. Pode-se dizer que as influências socializadoras do folclore são construtivas e que, desde os primeiros contatos com a escola, a criança traz o que construiu através das brincadeiras e que àquela deveria valorizar essa bagagem como uma ação educativa em prol da socialização dos sujeitos e a inclusão enquanto aprendente. Em suma, o folclore assume uma função socializadora, através dos grupos de brincadeira, a criança aprende a agir como ser social: a cooperar, competir, submeter-se a valorizar regras sociais, mantendo contato com o mundo simbólico, através do qual internaliza representações da vida, do homem, dos sentimentos e dos valores históricos e socialmente construídos. Logo, a aprendizagem pelo folclore se dá de forma espontânea; a criança aprende na convivência com os outros, angariando e trocando experiências, produzindo novos conhecimentos e quebrando paradigmas. Outro ponto polêmico discutido por Fernandes refere-se à proposta de folcloristas de introduzir o folclore como disciplina no currículo do ensino primário e no ensino superior.
A Carta do Folclore Brasileiro propõe: 55 Desenvolver ação conjunta entre os Ministérios da Cultura e Educação a fim de que o conteúdo do folclore e da cultura popular seja incluído nos níveis de 1º e 2º graus e como disciplina específica do 3º grau de forma mais ampla incluindo enfoque teórico e prático através do ensino regular, de oficinas, de observações e de iniciação às pesquisas bibliográficas e de campo (1995). Florestan reage a essa posição argumentando: Deve-se dar maior atenção às influências construtivas do folclore e aproveitá-las, onde for possível, na educação sistemática. Porém, de forma criteriosa e independente de complicação do currículo. O folclore pode ser transmitido através de várias matérias – sob os pretextos mais diversos! A questão, portanto, seria antes de valorização e utilização de um recurso educacional existente no ambiente, professores de português, de história, de geografia, de ginástica etc., poderiam tirar amplos proveitos construtivos desse recurso educativo.
Doutro lado, nada justifica a introdução do folclore, como disciplina independente, no currículo de qualquer nível de ensino – inclusive do superior (2003, p. 68). No entanto, mesmo discordando dessa inclusão, Florestan via no folclore um valor educativo, não somente como diversão, mas também como participação da criança ou do adulto em um sistema de idéias, sentimentos, valores, que orientam seus comportamentos, oferecendo-lhes um rico aprendizado. Outro aspecto a ser destacado é a questão do professor como incentivador ao estudo do folclore ou mesmo da vivência da cultura entre as diferentes gerações, já que divulgar o folclore permite às novas gerações compreender o movimento no tempo e no espaço, pois se sabe que ele não está desvinculado do dia a dia do aluno, visto que se manifesta em todas as situações quer seja pela herança folclórica ou pela mídia que o vende. Essa posição vai ao encontro da Carta do Folclore Brasileiro (1995) quando propõe “Considerar a cultura trazida do meio familiar e comunitário pelo aluno no planejamento curricular, com vistas a aproximar o aprendizado formal e não formal, em razão da importância de seus valores na formação do indivíduo”. Dessa forma, salienta-se a importância do papel do professor na leitura da cultura, da memória, da vivência dos educandos, enquanto sujeitos de sua história, pois remetê-los a pensar folclore enquanto eventos isolados (dia do índio, dia do coelho, etc.) é vago e fragmentado. Essas ações isoladas não se fundamentam numa compreensão ampla do que se entende por folclore, ou seja, no sentido de que ele é o modo de um povo compreender o mundo que se faz presente na casa, nas relações com o vizinho, no trabalho, etc.
56 É importante destacar que os educadores, enquanto responsáveis pelo processo de ensino/aprendizado e a escola como proporcionadora da emancipação e da cidadania, precisam estar atentos ao contexto dos sujeitos envolvidos para que possam desenvolver suas habilidades e competências como seres diferentes que possuem suas identidades culturais. Para Garcia (2000) quando os educadores passam a se interessar seriamente pelo estudo do folclore, começam a dar-se conta de que grande parte de seus conhecimentos, usos e costumes são pautados pelas vivências, resultantes de longos processos de formação cultural que lhes permitiu estruturar-se como pessoa, tanto na família quanto na sociedade. Para a autora, o folclore é constituído pelos saberes populares selecionados como elementos valiosos e identificadores de cada povo.
As diversidades regionais marcam características predominantes das maneiras de pensar, de agir e viver e indicam padrões culturais, mostram habilidades desenvolvidas, as soluções criadas, evidenciam a adaptação ao meio ambiente e os condicionamentos determinantes deste ou daquele modo de vida. A respeito comenta que: O folclore, inerente a todas as classes sociais, por suas raízes e tradições, é vivenciado no cotidiano através da linguagem, vocábulos, ditos, gestos, alimentação, artesanato, cantos, músicas, brinquedos, provérbios, técnicas rudimentares, medicina caseira, superstições, festas, folguedos e outros. São esses aspectos básicos para o desenvolvimento de um processo de identidade regional e nacional que precisam ser estudados pelo professor, com vistas a uma seleção do que e como utilizar no ensino (GARCIA, 2000, p. 28).
Para Florestan Fernandes (2003), os jogos e brincadeiras mantêm relações profundas com a construção de noções que embasam a vida social das crianças. A criança constrói sua identidade cultural a partir do passado e do que vive no cotidiano.
É importante destacar esse cotidiano, pois se nota que quando a criança brinca de roda, por exemplo, ela preserva a significação e a importância psicossocial que teve para outras crianças no passado e, segundo Fernandes, “não se trata de uma sobrevivência literalmente falando, mas de continuidade sociocultural” (2003, p. 19). A crítica feita às propostas que querem introduzir o folclore como disciplina no currículo é de que todas as disciplinas podem ensinar algo sobre o folclore e sob os mais diversos pretextos. Para Florestan, a questão é de valorização e utilização de um recurso educacional existente no ambiente e proporcionar esse conhecimento e essa vivência aos educandos, pois ele é um forte elemento de formação de cidadania e de nacionalidade.
É, ao 57 mesmo tempo, o que nos confirma na condição de seres humanos universais. É importante que o folclore na escola seja orientado por políticas públicas que valorizem o que as pessoas pensam e como participam de um sistema de idéias, sentimentos e valores, pensando e agindo em função de sua identidade cultural que perpassa as gerações. Neste sentido, pensar uma política nacional que proponha a preservação do folclore como proposta educativa para a criança aprender e agir como ser social, cooperar e a compartilhar com seus iguais, se submeter e valorizar as regras sociais existentes na herança cultural, a importância da liderança e da identificação com centros de interesses suprapessoais, além de introjetar técnicas, conhecimentos e valores que se acham objetivados culturalmente é de grande valia. Logo, todas essas questões foram abordadas por Florestan Fernandes e nos faz pensar o folclore como fonte construtiva do sujeito histórico.
Fonte: www.livros01.livrosgratis.com.br