Protagonismo de uma liturgia popular. Uma visão antropológica.
Resumo
Este artigo apresenta algo da riqueza de expressões religiosas, rituais, simbólicas e místicas que os romeiros inventam e reinventam nas estradas que levam até Juazeiro do Norte, CE. Procura-se entender porque essas expressões atravessam o tempo numa longa tradição que não mata a originalidade nem a criatividade dos “afilhados do Padre Cícero”. É uma leitura psicológica e antropológica que pode servir de base para um aprofundamento teológicolitúrgico.
Palavras Chaves: romeiro, “espacialidade”, procura, caminho, sonho, esperança, salvação
Este estudo, em vista da assessoria do XX Encontro da ASLI – Associação dos Liturgistas do Brasil, com o tema Romarias, piedade popular e liturgia, realizado em Cachoeira do Campo, Diocese de Mariana, MG, em 2009, se propõe a aprofundar a dimensão antropológica e psicológica das romarias de Juazeiro do Norte, buscando aí uma intersecção com a Liturgia da Igreja.
Romeiros/as e Romarias em Juazeiro do Norte
Os pés dos romeiros são como lápis. Nós, pobres, somos de poucas letras, Mas a gente também escreve com os pés. Só que para ler essa escrita precisa conhecer os chãos da vida e das estradas duras. E é preciso curtir o couro dos pés. Pezinhos de pele fina não deixam quase nada escrito nos caminhos da vida .
Romaria: uma espacialidade mística
O romeiro transforma, organiza e vive o espaço em dimensões religiosas, numa “espacialidade mística”, uma grande liturgia.
A “espacialidade” em psicologia fenomenológica é o espaço vivido, subjetivo, em oposição ao espaço que se mede objetivamente (100 metros quadrados, por exemplo).
Há Igrejas que ajudam a rezar, outras não! Elas podem medir o mesmo espaço geométrico, mas este é “habitado” de maneira diferente. É uma questão de espacialidade
No dia a dia, nossa casa é a espacialidade vivida como “centro” de nosso mundo. Na hora da romaria, o peregrino deixa seu centro de referência costumeiro e caminha em direção a outro centro, onde ele projeta valores, desejos, sonhos que motivam a sua peregrinação na terra. Contrariamente ao que alguns pensam, a romaria não é fuga da realidade diária, mas procura de sentidos, reabastecimento da esperança para viver melhor esta realidade.
Quais seriam os “valores” e “sonhos” projetados pelo romeiro no Centro de romaria que é Juazeiro? Esse estudo nos parece fundamental para entender a originalidade de sua liturgia, de seu ritual de aproximação do sagrado visualizado por ele nessa “terra da Mãe das Dores e do Padrinho Cícero”.
Será que ele é mesmo protagonista de uma liturgia popular? Anos de observação e convivência na espacialidade romeira em Juazeiro, nos convenceram que sim. É necessário lembrar o quanto os romeiros do Padre Cícero sofreram oposição da parte do clero nordestino.
Depoimento de Romeiro, citado por SOARES, Sebastião Armando Gameleira. A romaria dos pobres de Deus, in Romeiros de ontem e de hoje Estudos Bíblicos, nº28, Vozes, 1990, p.33
Revista de Cultura Teológica – v. 17 – n. 67 – ABR/JUN 2009
Dra. Ir. Ana Teresa Guimarães e Dra. Ir. Annette Dumoulin
Para a Igreja católica, até há poucos anos, Juazeiro era visto como um Centro de “contra-valores”: fanatismo, idolatria, ignorância, desobediência… Em resposta, o romeiro desenvolveu sua criatividade, originalidade e convicção numa arte de viver, de inventar e reinventar as expressões de sua fé, fortificando assim, sua capacidade de resistência e sua fidelidade ao Padrinho Cícero. A “espacialidade da romaria” ficou livre de eventual imposição ou proposição clerical, para ser geradora de comportamentos, gestos, ritos próprios.
Mas, por que houve perseguição aos romeiros, a Juazeiro e ao Padre Cícero? Não é lugar aqui para desenvolver essa longa e tumultuosa história. Lembraremos apenas alguns fatos importantes:
Em 1889, aconteceu na capelinha do lugar um “milagre eucarístico” que foi condenado pela Igreja como fenômeno vão e supersticioso (1894). A hóstia se transformou em sangue na boca da Beata Maria de Araújo. O fato foi silenciado por obediência à decisão romana, mas os romeiros continuaram a acreditar no “milagre” e a visitar o “Santo Juazeiro”, Nossa Senhora das Dores e o Padrinho Cícero. Este foi condenado mais de uma vez por ser julgado o principal responsável de atrair romeiros, prolongando assim um movimento considerado fanático.3
Hoje, cerca de dois milhões de romeiros visitam anualmente a “Jerusalém Nordestina”.
Alguns valores e sonhos que o romeiro projeta no “Centro-Juazeiro”.
Em síntese, podemos afirmar que:
1) O Cariri, Pe.Cícero e Juazeiro pertencem ao tesouro mítico do povo Nordestino.
2) Juazeiro é um “centro” de salvação econômica no Nordeste.
3) Juazeiro é um “centro” de salvação religiosa.
4) Juazeiro é a concretização da salvação “Católica Romana” em terra brasileira.
5) Juazeiro é a experiência de ser “povo roceiro”, “gente nordestina”, “nação romeira”.
1) O Cariri, Pe.Cícero e Juazeiro: tesouro mítico de um povo que se procura.
“O mito é o sonho de um povo, como o sonho é o mito do indivíduo”4 Uma cultura sem mito é uma cultura doente . O mito é uma explicação do real, é a forma primeira da elaboração do dado da experiência.
: A lenda da “pedra da Batateira”.
Segundo o cineasta e pesquisador Rosemberg Cariry,5 os remanescentes das tribos Cariris, ocupando uma grande parte do Sertão Nordestino, guardaram codificados, na sua sensibilidade, intuição e memória, a evocação da “lagoa encantada” – lugar mítico das suas origens. Para eles, todo o vale do Cariri era um mar subterrâneo. Debaixo da terra, dormia a Serpente d’Água, cujo imenso caudal era represado pela “Pedra da Batateira”, ao sopé da Chapada do Araripe. Precisamente, onde hoje está situada a Matriz do Crato, erigida sob a invocação de Nossa Senhora do Belo Amor, era a cama da baleia. Os Pajés Cariris profetizavam que a “Pedra da Batateira” iria rolar e todo o vale do Cariri seria inundado. As águas, em fúria, devorariam os homens maus que tinham roubado a terra e escravizado os índios. Quando as águas baixassem, a terra voltaria a ser fértil e livre e os Cariris iam repovoar o “Paraíso” que tinham perdido. Por volta de 1779, os Cariris atribuíram esta profecia ao Frei Vital Frescarolo, missionário Capuchino. Em um momento de crise de dissolução da cultura e do sentido de “comunidade”, os caboclos Cariris buscaram assim, uma autoridade exterior para dar à lenda foros de verdade sagrada e manter a coesão do grupo. (…) Esse “caldo mítico” original foi propício à fecundação e eclosão dos futuros movimentos religiosos. Os “expulsos do “Paraíso” sonhavam e ainda sonham com o seu retorno.
A lenda, com o tempo passou por modificações ao sabor das necessidades históricas. Para os romeiros que chegavam a Juazeiro, a profecia da grande enchente era inquietante, pois significava que Juazeiro ia também ser inundado. Surgiu então, a “boa nova” de que o Padre Cícero amarrara a “pedra da Batateira” com grossas correntes de ferro e teria pedido a proteção da Mãe do Belo Amor. A pedra só iria rolar no final dos tempos e Juazeiro seria suspenso no céu para que as águas passassem devorando as iniquidades do mundo. Baixadas as águas, teria início a era do “Espírito Santo”, e os pobres e deserdados da terra, herdariam o “paraíso”.
Nas suas andanças pelo Cariri, na época em que negociava com cachaça, Antônio Conselheiro escutou de caboclos da região a lenda da “pedra da Batateira”, a partir da qual fundamentaria a profecia que pregava nos sertões da Bahia: “O Sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”(…)
E Rosemberg conclui: “Juazeiro é um rio que flui das profundidades da alma coletiva, um mundo que se inventa a si – mesmo. Não importa que novas lendas surjam a cada dia e que antigos mitos sejam sempre recriados – tudo gira em torno do Padre Cícero. (…) É inútil buscar nas ações históricas e contraditórias do Padre Cícero homem, todas as motivações para a fé do povo. O mito do “Padim Cíço” tomou o lugar do homem concreto e histórico. (…) O “Padim Ciço” é água caririzeira que brota do mar do inconsciente coletivo e universal para desaguar e fertilizar as securas dos sertões. (…) Em Juazeiro, as pedras se transformarão em pão,6 e nos rios, correrão leite e mel. Enquanto o “Paraíso” não se desencanta e o sonho da Nova Jerusalém” não se realiza, o povo resiste e encontra, na sua própria história e cultura em construção, as formas de luta e da necessária resistência. A cultura cabocla-cariri não é uma cultura de miséria, é antes a cultura que à miséria resiste e que afirma a vida no ritual da beleza possível.(…) O povo, reprimido e massacrado em Monte Rodeador, Canudos, Juazeiro, Caldeirão, Pau de Colher… já sabe o quanto dói a repressão e sempre encontra as formas mais eficazes de proteger seus segredos e cultuar seus ‘deuses’”.
Cantadores de viola e poetas de cordel.
A leitura da literatura do Cordel nos faz entrar no mundo mítico do homem Nordestino: um mundo repleto de estórias, lendas e símbolos que falam e ressoam profundamente na alma do sertanejo. É sua leitura preferida.
Os títulos de Cordel são sugestivos: “A Mendiga da estrada e os milagres do Padre Cícero”, “Palavras do Padre Cícero sobre a guerra nuclear” (João José Silva); “O sonho do Padre Cícero na hora de sua morte” (L.R.dos Santos); “Visão milagrosa do homem que ouviu o Padre Cícero nas frentes de trabalho”, “Meu sonho com Padre Cícero” (João Bandeira Caldas);” O homem que virou bicho, porque duvidou do Padre Cícero” “Verdades incontestáveis ou a voz dos Romeiros” (Uma resposta ao livro “O Apostolado do embuste); “Palavras do Padre Cícero sobre o recenseamento” (Heráclito Amorim); “Os dois jovens que andaram 122 léguas pelo poder do Padre Cícero” (Abraão Batista); “Conselhos que o Padre Cícero dá aos sertanejos” (Zilmar Barbosa de Santos), “Padre Cícero e a ecologia” (Willian Brito), “ Nascimento de Padrinho Cícero e a troca misteriosa das crianças” (João do Cristo Rei) “O homem que falou com o diabo em Juazeiro” (João do Cristo Rei) etc.
A título de exemplo, vejam a beleza do Cordel de Patativa do Assaré:
(Saudação ao Juazeiro do Norte)
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