A cana-caiana, é a única Saccharum officinarum a denominar a aguardente, ingressando na rica sinonímia da cachaça.
Batizou um livro de poemas de Ascenso Ferreira (Cana-caiana. Recife, 1939), onde reaparece um ditirambo popular:
Suco de cana-caiana
Passado nos alambique
Pode sê qui prejudique
Mas bebo toda sumana
As primeiras mudas vieram de Cayenne, capital da Guiana Francesa, então domínio de Portugal, chegando ao Rio de Janeiro, em maio ou junho de 1810, deduzindo-se do registro do padre Perereca (Luís Gonçalves dos Santos.Memórias para servir à história do reino do Brasil. I, 332, Rio de Janeiro, 1943):
“Sim, também desta colônia francesa, presentemente sujeita ao domínio do príncipe regente nosso senhor, foi remetida para esta corte, pelo brigadeiro Manuel Marques, governador da mesma colônia, uma preciosa coleção de plantas especieiras, e frutíferas, extraídas do célebre jardim chamado Gabriela, onde os franceses as cultivavam com todo o desvelo e ciúme. Muitas dessas plantas ficaram no Pará, outras em Pernambuco, e grande número delas chegaram a este porto do Rio de Janeiro, carregadas a bordo do brigueVulcano, do comando do capitão-tenente Joaquim Epifânio de Vasconcelos, e logo foram remetidas para o jardim real da lagoa de Freitas, para ali se cultivarem. Juntamente com esta remessa de plantas vieram canas sacarinas da mesma Caiena, as quais pela sua enorme grandeza e grossura, se fazem apreciáveis, prometem grandes vantagens à cultura, e fabrico do açúcar, e muito maiores ainda para a destilação das águas-ardentes, visto serem as ditas canas muito suculentas“.
Em 1768 o navegador Bougainville encontrara-as na ilha de Taiti, vindas da Índia ou mais provavelmente da Polinésia, origem do povoamento insular. [1] Trouxera sementes para as ilhas Maurícia (de France), e Bourbon (Reunion), de onde as recebeu a possessão francesa vizinha ao Brasil, dizendo-as Canan de Bourbon. Divulgaram-se em Cayenne, sede de maior concentração canavieira, inicialmente utilizada na fabricação das tafiás, determinando alto número deRhuberies, antes que produzissem o açúcar, segundo a informação de Augusto de Saint-Hilaire. O açúcar nunca atingiu nível suficiente ao consumo local ainda em 1960.
A tafiá é aguardente do mel.
Em 1810, é a data histórica, vencendo os cinco mil quilômetros de distância, a cana-caiana veio reinar no Brasil. Cito “data histórica” porque há a tradição de dom Francisco de Souza Coutinho, entre 1790-1793, havê-la introduzido no Pará, tendo-a bem, pouco provável, da Guiana Francesa, alcançando Pernambuco e mesmo a Bahia.
Os naturalistas viajantes no quinqüênio 1815-1820 deparam a cana-caiana nos engenhos fluminenses (Wied-Neuwied) aos pernambucanos, (Henry Koster). Escreveu este:
“Sua superioridade é tão evidente que, depois de rápido ensaio em cada propriedade, substituiu a pequena cana-de-açúcar, geralmente plantada” (Viagem ao nordeste do Brasil. XVI)
Wied-Nieuwied equivoca-se: “Cultivavam a princípio a cana da Caiena; tornando-se, porém, conhecida a do Taiti e revelando-se esta muito mais produtiva, substituiu quase completamente aquela“. (Viagem ao Brasil. III). Era a mesma. Competira e vencera a velha cana criola inicial, vinda da ilha da Madeira que a recebera da Sicília, plantada pelos mouros, e fundara a indústria açucareira no Brasil. A cana-caiana resistia mais à falta de chuvas, adaptando-se aos terrenos secos, embora o teor sacarino fosse acentuado na maturação.
O professor Renato Braga (Plantas do nordeste, 118) esclarece:
“Tanto a caiana, como outras variedades posteriormente introduzidas: preta, roxa, bambu, ou salangor, cavangire, imperial, de Pernambuco, amarela, fitaou listrada, rajada, rósea, etc. foram quase totalmente substituídas, a partir de 1930, pelas variedades javanesas e outras canas híbridas, além de mais produtivas, resistentes ou tolerantes ao mosaico”.
Essas variedades soavam no ritmo aceso das emboladas pelos cambiteiros dos engenhos nordestinos:
Cana-caiana, cana roxa, cana fita
Cada qual a mais bonita
Todas boa de chupá!
A cana preta, amarela, pernambuco
Quero vê descê o suco
Na pancada do ganzá!
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Atenda-se que o brasileiro é devoto da cachaça mas não é cachaceiro. Augusto de Saint-Hilaire, de junho de 1816 a agosto de 1822, percorrendo o Brasil do sul, fixado em livros incomparáveis, informava em 1819 que Cachaça é a aguardente do país. Apesar do registro vulgarizador, o grande botânico não hesitou em afirmar: “Não se deva supor, todavia, que o gosto desses homens pela cachaça os conduza freqüentemente à embriaguez. Apresso-me a dizer, em louvor não só dos goianos, como ainda dos habitantes do Brasil em geral, que não me lembro de ter visto, no decurso das minhas longas viagens, um único homem embriagado” (Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela província de Goiás, 2º, São Paulo, 1937).
Mais vivo é o depoimento de George Gardner, de julho de 1836 a junho de 1841 no Brasil, colecionando plantas para os museus da Inglaterra. Médico, Gardner ficou dois anos no Rio de Janeiro, passando à Bahia, Recife, Ceará, alcançando o Piauí, Goiás, Minas Gerais, visitando regiões inexploradas, motivando o inimitável Travels in the interior of Brazil, Londres, 1846. Declara:
“Vindo do Brasil desembarquei num domingo de manhã em Liverpool, e vi nesse dia mais ébrios, no meio das ruas dessa cidade, do que vi, entre os brasileiros, brancos ou mestiços, durante toda a minha estada em seu país, que foi de cinco anos“.
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Samuel Wallis, o descobridor do Taiti, encontrara em 1766, cana-de-açúcar, coqueiros, bananeiras, inhame, fruta-pão, na ilha. Commerson, o naturalista da expedição Bougainville, dois anos depois, afirmara serem produtos da flora da Índia. Todas essas plantas estavam disseminadas por quase todas as ilhas dos mares do sul, de uso tradicional e antiqüíssimo por toda Polinésia, povoadora do Taiti. Exceto o fruta-pão (Artocarpus incisa, Linneu, vindo em 1810), as demais estavam aclimatadas no Brasil desde a segunda metado do século XVI.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio da cachaça)